Éramos três mulheres, em torno dos 24 anos, dividindo um apartamento em uma comunidade em Nairóbi. C. estava escorada na porta de seu quarto. Eu, na porta do quarto que dividia com R., que naquele momento, apoiou o corpo na parede próxima ao banheiro.
Assim, sem notar, formamos um círculo em torno da cozinha.
O assunto surgiu discreto. Contávamos do nosso dia a dia ali, dos comentários que ouvíamos vindo dos homens, das histórias de horror que ouvíamos das mulheres.
Tudo parecia distante.
Não lembro quem foi a primeira a falar. Sobre as situações vividas apenas por ser mulher. Sutis. Pesadas.
E então, uma a uma, compartilhamos histórias e segredos. Tão similares. Dividimos os mesmos medos, as mesmas culpas, a mesma raiva, as mesmas dúvidas, as mesmas inseguranças. A mesma frustração. Por que tem de ser assim?
Tudo, agora, era tão próximo de nós.
Doía.
Àquela que se casou. À que mora sozinha. "Coitada, mas é uma mulher difícil."
Àquela que pariu. À que abortou.
Àquela que engravidou jovem. À que virou mãe muito tarde.
Àquela que ouviu piada sobre ser mulher na reunião de trabalho, na sala de aula, na mesa do bar. Dos colegas, dos amigos, da família. "É só brincadeira!"
Àquela que foi perseguida no trânsito, na rua, rodeada no ônibus.
Àquela que casou virgem. “Fica se fazendo.”
Àquela que transou no primeiro encontro. “Essa não é pra casar.”
Àquela que perdeu o emprego por cuidar do filho doente. À que não conseguiu emprego por se tornar mãe.
Àquela que ganhou peso. À que emagreceu. "Não anda se cuidando."
Àquela que dá conta de tudo. À que está exausta por dar conta de tudo. “Que nervosa…”
Àquela que não foi promovida no trabalho. “Isso não é coisa pra mulher fazer.”
Àquela que abandonou a faculdade, o trabalho, largou os próprios sonhos em prol do casamento, da maternidade. "É seu papel."
Àquela que se separou, quando diziam para aguentar porque "homem é assim". “Coitadinho”.
Àquela que teve o corpo tocado por um estranho no ônibus, no táxi, na rua, na balada, no barzinho. De manhã, de tarde, de noite. "Mas com essa roupa…"; “Mas tarde da noite, queria o que?”; “Mas também, saindo sozinha…”
Àquela que teve o corpo violado pelo namorado, pelo marido. "Mas é namorado, tudo bem."
Àquela que teve a infância roubada.
Àquela que apanhou do pai, foi espancada pelo parceiro. “Mas tava merecendo.”
Àquela que teve a fala interrompida no trabalho, dentro de casa.
Parabéns, não sabia que você fosse capaz de escrever! Seu diploma só vai servir pra limpar a bunda. Foi culpa sua. Que maravilha, uma bunda pra olhar! Essa nunca trabalhou na vida. Fecha as pernas, menina! Foi culpa sua. Assim é feio! Dá um beijo no tio. Oi gostosa! Deixa de ser maluca! Espera, você não entendeu, deixa eu te explicar. Foi culpa sua. Isso é jeito de mulher falar? Mulher compromissada não sai por aí sozinha. Sua puta! Foi culpa sua. Você não fez o suficiente. Foi culpa sua. Vai lavar uma louça! Essa não transa faz tempo. Quer mais o que? Para de vitimismo. Foi culpa sua.
A nós, mulheres. Que nascemos, crescemos e continuamos de pé, apesar do silenciamento, apesar do demérito, apesar das violências, que chegam de forma sutil, da boca de quem nos quer bem, das mãos de quem nos ama; que chegam de forma bruta, de gente que mal nos conhece, de pessoas que nunca vimos.
A culpa que a gente carrega em silêncio. Sozinhas. A culpa que a gente sente por falar, por escrever. Por compartilhar.
Àquela que segurou nas mãos da amiga quando tudo parecia ruir.
Àquela que abriu a porta de casa para receber uma viajante.
Àquela que deu carona na rua para uma desconhecida.
Àquela que apoiou quando o mundo dizia que não.
Àquela que guardou segredos.
Àquela que recusou se calar. À que restou de pé.
Àquelas que confiaram a outras mulheres as suas histórias. Às que confiaram a mim.
Porque é entre nós que encontramos apoio genuíno. Compreensão. Empatia.
Às amigas. Às mães. Às irmãs. Às filhas. Às tias. Às primas. Às sobrinhas. Às cunhadas. Às sogras. Às noras. Às colegas. A todas nós, mulheres. De realidades tão distintas, com histórias tão similares. Tão sutis. Tão extremas. Tão reais. É quando compartilhamos nossas vivências com outras mulheres que entendemos.
Não estamos sozinhas. Não precisamos passar por isso sozinhas.
Não devemos nos conformar.
Às três mulheres em círculo na cozinha, que hoje criam três meninas inocentes, em três culturas diferentes. Tentando, dia após dia, aliviar o peso da bagagem que suas filhas terão de carregar. Só, e simplesmente, por serem. Mulheres.
Que texto difícil, mas que precisa nascer e se colocar no mundo!
Que texto incrível, Nike.
Me emocionou e tocou demais.
Que nós, mulheres, consigamos sempre nos apoiar e nos espelhar em outras mulheres grandiosas.