Atolando na neve, esquiando na areia
#16 Sobre conviver com a neve. E uma pequena conquista como escritora.
Tempos atrás atolei o carrinho de bebê na neve. Sim. Atolei o carrinho na neve, você não leu errado. As rodas enterraram e o bendito não saía do lugar. Era dia de consulta no pediatra e o caminho que deveria levar em torno de quinze minutos, durou meia hora sob força e suor de uma mãe tentando, sem sucesso, transportar a filha pela neve que atravessava os pés cobrindo a canela.
Cheguei atrasada. E destruída. Passando calor quando os termômetros marcavam -8°C. Antes que eu pudesse me desculpar, a enfermeira veio avisar, sem graça, que a pediatra também estava atrasada. É normal em dias de nevasca.
Sentei na salinha contemplando o cenário branco que refletia na janela as nove da manhã, me encantando mais uma vez com a neve — a mesma que me fez quase abandonar um carrinho no meio da estrada e seguir com um bebê nos braços.
Quando criança ela sempre foi um mistério para mim. Aquela espécie de espuma branquinha que caía do céu e deixava a paisagem parecendo algodão. Só podia ser coisa de outro mundo, onde os bichos falavam e as rainhas moravam em grandes castelos de pedra.
Será que se lançar na neve é como se jogar no sofá? Me perguntava enquanto observava o oceano e fazia castelinhos de areia com baldes de plástico. Coisa que toda criança fazia, pensava ingênua.
A gente cresce no mesmo lugar achando que o mundo é aquele pequeno pedaço de vivências pessoais e de que deve ser assim também do outro lado do polo: mar, rede, jogar taco no meio da estrada, catar marisco na praia, jogar futebol usando chinelo como marcação da travinha.
Até que passa a conhecer gente que cresceu em cidades onde faz frio o inverno inteiro e esquiar é tão normal quanto bocejar quando se tem sono.
Quem cresce cercado de areia mal imagina que na neve também é possível atolar. Quem cresce cercado de neve nem pensa que na areia também é possível esquiar.
Lembro da primeira vez que mostrei uma foto à uma amiga italiana das imensas dunas de areia com pessoas praticando sandboard. Ela ficou perplexa, positivamente, como todo mundo fica quando eu digo que no Brasil a gente meio que esquia, só que na praia. Sob o sol. E depois chupa picolé.
E é assim, feito picolé, que a neve se transforma na calçada com o passar do tempo. Aquela coisa fofinha e bonita vira uma fina camada de gelo feita para provocar tombos espetaculares. Mas apenas de quem não cresceu nessa realidade. Suecos deslizam como se estivessem patinando numa apresentação olímpica. As crianças brincam sem medo, enquanto eu uso o carrinho de suporte pra não me espatifar no chão (e mesmo assim, nem é garantido).
Quando o sol começa a dar as caras e os termômetros saem do zero, o gelo se vai da calçada e tudo que resta é a neve derretendo nos galhos secos das árvores. Ao passar por debaixo delas é como se chovesse num dia ensolarado, e o pingo cai certeiro dentro da sua blusa, gelando sua nuca e escorrendo pelas costas. Nessas horas eu penso em todo o esforço desperdiçado na tentativa de conter aquelas gotas d’água que escorrem pela manga da camiseta chegando até o cotovelo quando se está lavando louça.
Faz um mês que a neve deu uma trégua pelas bandas de cá e o sol vem trazendo os primeiros sinais da primavera. Ainda assim, é possível ver resquícios de um gélido inverno. E as vezes bate até saudade daqueles floquinhos caindo do céu e iluminando a noite, clareando os dias curtos, trazendo aconchego, limpando as botas e as patas dos cachorros só de pisar na rua.
Por mais que agora seja algo tão corriqueiro, a neve ainda me faz turista em minha própria casa. Ah, e se lançar nela é tão divertido quanto se jogar no sofá.
☃️ The Snowman
Um poema de Wallace Stevens sobre a neve, na voz da maravilhosa Patti Smith <3
✏ Pequenas conquistas
Quando a Ana Holanda me procurou pedindo autorização para usar um texto meu no material de seu novo curso de escrita, eu já fiquei chocada (no bom sentido). Mas ao ver o material, composto apenas com textos dela, salvo o meu, aí a surpresa foi maior ainda. Uma honra e uma pequena conquista de quem gosta muito de escrever. 🥰
O texto foi usado como exemplo de escrita livre e sem censura e já saiu nessa news: