Brincando com palavras
#24 Sobre conviver com um bebê multilíngue e estar cercada de palavras.
— Vamos tomar banho, filha? — perguntou o pai.
— Neeeej! — respondeu a menina, sem nem pensar duas vezes.
— Ela disse Nej?! — falou o pai, dirigindo-se a mãe, buscando a certeza de que não ouvira errado.
Mas antes que a mãe pudesse responder que sim, aquele bebê tinha acabado de responder em sueco, a filha prontamente traduziu para o perdido pai:
— Não, não.
Eu tinha plena consciência de que um dia isso aconteceria. Não imaginava que tão cedo. Minha filha tinha um ano e três meses e falava apenas palavrinhas curtas (como ainda o faz) mesmo compreendendo praticamente tudo que saía da minha boca.
Desde que Valentina nasceu tenho prestado mais atenção nas palavras. Não só as que falo, como também as que me circundam. As sílabas, o som, o ritmo, o desenho, a forma das letras.
De uns meses pra cá sua brincadeira favorita é apontar para tudo que a rodeia a fim de aprender o nome de cada coisa. Personagens nos livros, louças na mesa, brinquedos do parquinho, items do guarda-roupa, paisagens urbanas, coisas que voam no céu. Ela aponta, aponta, aponta num looping infinito e se diverte com as palavras que saem da minha boca nomeando as coisas repetidamente até que o som de duas palavras pareça uma só.
O velho. A velha. O velho. A velha. O velho. A velha. O velho. A velha. Ovelha.
Começa também a fazer associações: aquilo que se bebe no copo tem o mesmo nome do que sai do chuveiro: água. Uma escova serve para escovar os cabelos e também, os dentes. Quando aprende uma palavra, passa o dia a repeti-la. Arara, areia, orelha. Não demorou para perceber que esses três nomes tem a mesma cadência. O mesmo número de sílabas.
Em abraço, tem braço. Em piolho, tem olho. Em camaleão, tem leão. Em batman, tem bate (palmas). Em orecchio, tem occhio (do italiano: orelha e olho). Sombra lembra sobrancelha.
Valentina convive, desde que nasceu, em um ambiente multilíngue. Atualmente ouve dentro de casa dois idiomas (português e italiano) e fora de casa outros dois (sueco e inglês). Então, parte de sua brincadeira-de-apontar é ouvir o nome das coisas em todas as línguas que conhece. E assim, ela decide o que soa melhor para cada objeto, ação, verbo, sujeito, adjetivo.
Dançar não tem tanta graça quanto ballare. Cabeça, ombro, joelho e pé soa mais musical em sueco, mas a dona aranha é mais divertida em português. O não perdeu lugar definitivo para o nej. Mas mamãe sempre foi dito numa língua só. Olá, prefere em sueco: Hej! Mas para se despedir, fala em português: tchau tchau! Cachorro fica tudo misturado: o bau bau* que faz auu!
Minha filha me permite brincar com as palavras feito massinha de modelar. Quebrá-las, misturá-las, (re)inventá-las.
Uma mão. Um mamão. Uma mão melada de melão.
Por que chamamos cavalo marinho, peixe-boi, leão-marinho, mas o narval não leva o nome de baleia-unicórnio? Água viva faz mesmo mais sentido em inglês: jellyfish (peixe gelatinoso). Já ouviu palavra mais esquisita que estetoscópio e estalactite? Se desenharmos a letra H uma em cima da outra, forma-se uma escada; a letra M uma do lado da outra forma uma cadeia de montanhas; a letra B espelhada lembram as asas de uma borboleta. Será que a palavra Pá vem do som que a pá faz quando bate na areia para enterrar o próprio pé? pápápápá.
Pá. Pé. Pá. Pé. Pá. Pé. Pá. Pé. Pá. Pé. Pá. Pé. Pá. Pé. Papel. (acreditem, eu tive de ficar repetindo isso continuamente por cerca de cinco minutos brincando na areia em um dia qualquer).
Dizem que as palavras passam a existir quando nos comunicamos oralmente. Mas minha filha me mostra que não é preciso saber falar todo o tempo para que a palavra se manifeste. Seus gestos, olhares, expressões e movimentos comunicam mais que muita gente que fala ou escreve por aí. Sua atenção a cada sílaba que pronuncio e a cada novo idioma que escuta na rua, no metrô, na escolinha me torna novamente fascinada por essa coisa tão simples e ao mesmo tempo tão complexa: a palavra. O único bem que a gente carrega antes mesmo de nascer. Viemos ao mundo com um nome, e só. Um composto de letras pensado e repensado com carinho por quem mais nos quer bem.
Nosso primeiro presente, quem diria, é uma palavra — e a gente faz dela nosso próprio ser.
*Bau bau é a onomatopeia para o latido do cachorro em italiano e também a forma como chamam cachorro de maneira infantil, literalmente nosso “au-au”. Na Suécia, quem faz au au é a coruja. Já o cão late voff voff. Até os bichos soam de maneira distinta em diferentes idiomas.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Jorge Larrosa Bondía — Notas sobre a experiência e o saber de experiência
De onde nascem as palavras
Para ouvir: O episódio “O poder da Palavra” do Podcast Bobagens Imperdíveis, todinho criado pela Aline Valek. Vale seguir a newsletter dela também :)
Para ver: o episódio Primeiras Palavras (numero 4) da sérieBebês em Foco, da Netflix.
Para ler: The Language Instinct, de Steven Pinker e um dos meus favoritos: Through the Language Glass — Why the World Looks Different in Other Languages, de Guy Deutscher.