Cartas que vem de longe
#21 Sobre amizades construídas entre oceanos, o tempo dedicado a escrever a alguém, a primeira vez que morei fora e amêndoas de sabores esquisitos.
Fazem muitos anos-novos que recebo uma carta, sempre amável, de uma amiga. Algumas vezes elas se perderam nas minhas andanças, a carta chegava depois que eu já tinha partido. Em outras, a recebia com alguns meses de atraso. Mas elas sempre saíram do mesmo remetente: Seoul, Coreia do Sul.
Peia é uma coreana inteligente e corajosa. Ao mesmo tempo, traz um ar inocente quando tampa a boca com a mão para dar uma risadinha. Mais alta que a média, magra, com cabelos pretos escorridos e uma franja impecável, ela reclamava que seu estilo de vestir era visto como masculinizado em sua terra.
Nos esbarramos em 2008 em Cambridge, na Inglaterra. Começávamos um curso de inglês na mesma escola, mas não na mesma turma. Peia já dominava um nível mais avançado. Trancou a faculdade de engenharia para viver a experiência do intercâmbio — e fugir dos seus problemas. Queria mudar de curso, mudar a rotina, se sentir um pouco livre. Mas tinha vinte e um anos e, segundo ela, tirar uns meses “sabáticos” seria ficar pra trás na carreira. Estava velha demais para mudar o que fosse. Eu, ao invés, tinha quase dezoito e não sabia nem por onde começar.
Não lembro ao certo o que nos tornou tão amigas. Quem sabe o fato de sermos novatas e, por isso, sentarmos na mesma mesa no refeitório já que não conhecíamos ninguém. A gente deve ter comentado sobre a comida sem sal e o mau humor do cozinheiro britânico que jogava a lasanha de legumes no nosso prato como naqueles filmes de prisão.
Tenho certeza que foi ela quem deu o primeiro oi. Apesar do meu entusiasmo, ainda não tinha coragem suficiente para começar uma conversa com alguém desconhecido. Era a primeira vez que morava fora e me encontrava cercada de gente de tudo quanto é canto, com todos os níveis possíveis de inglês. Peia, ao invés, tinha viajado algumas vezes com sua mãe pela Europa e pela Ásia.
Viramos amigas. Descobrimos cada cantinho da cidade juntas — ela me ensinou a usar chopsticks em um restaurante coreano, eu a levei para comer bolo de cenoura em uma padaria brasileira. Viajamos para Londres algumas vezes de trem, outras de ônibus. Vimos o musical do Rei Leão. Tomamos chá em Grantchester e subimos em árvores no caminho de volta.
Quando tive de ir embora, Peia estava entre os tantos amigos que fiz naquela cidade, pronta para me dar um abraço e esconder as lágrimas.
Não demorou muito para receber sua primeira carta de ano novo. Um cartão azul claro com o desenho de um animal na frente — uma espécie de gato ala estúdio Ghibli — e doces palavras escritas a mão com letra de fôrma que invejo desde então. Junto a carta, um belo marcador de páginas.
Achei a surpresa um dos gestos mais afetuosos que alguém poderia fazer em tempos de e-mail, redes sociais e conversas instantâneas. Sair de casa. Escolher um cartão. Escrever a mão. Comprar um selo. Ir ao correio. Mandar algo sem a certeza que de fato chegaria ao destinatário, sem saber quanto tempo levaria para que a carta atravessasse o oceano.
Lembro de quando era criança, na escola, e a professora nos convidou para escrever um postal para nossos pais. O espaço da carta era pequeno e eu não me recordo o que escrevi. Certo que no fim se lia “amo vocês. beijos, Nike”. Sempre fiz questão de demonstrar meu amor em palavras.
Fomos até uma caixinha de correio na rua e ali colocamos nossos postais. Em breve eles seriam entregues a seus destinatários. Passei o dia e a noite na expectativa daquela carta chegar. Em meio a contas e publicidade, um postal de uma criança com certeza fez o dia dos meus pais. E o meu também. Achei o máximo a cartinha que eu tinha escrito no colégio aparecer na minha casa sem que fosse eu a levar.
A última carta de Peia foi enviada em fevereiro, o mês em que Valentina completou um ano de vida. Não foi só ela quem enviou cartões e presentes. Eles chegaram de todos os lados — Brasil, Itália, Bélgica, Suécia, Alemanha, Inglaterra. Mas a da Coreia nunca chegou. Achávamos que tinha se perdido na longa viagem, até que esta semana dei de cara com uma caixa em frente a minha porta.
Abri. Roupas de inverno para um bebê. Amêndoas de todos os sabores possíveis e imagináveis* para a família. E no fundo da caixa, lá estava ele, o envelope branco com letras miúdas inconfundíveis.
“Estou atrasada, mas feliz ano novo. Ouvi dizer que aí onde você está morando agora é frio, mas não sei ao certo pois nunca visitei este país”.
Gosto da simplicidade dessas cartas. Sem delongas, sem relatos extraordinários. Tão banal quanto uma mensagem de WhatsApp. Mas veio em um cartão com detalhes dourados. Dentro de um envelope. Escrita a mão. Cruzou o Oceano Pacífico. Passou por diversos países até chegar a mim. Apenas para dizer “hey, lembrei de você hoje. Como vai?”
*Amêndoa de tiramisu, bolo de cenoura, wasabi, pão de alho, entre outras iguarias peculiares. Tipo pizza brasileira. Pense em um sabor absurdo e é certo que irá encontrá-lo em versão pizza.
📖 Cartas para Valentina
Em novembro do ano passado, escrevi e publiquei um livro com cartas para minha menina e crônicas de algumas viagens que fiz ao longo destes quatorze anos e mais de cinquenta países na mochila. Dá para ler em versão e-book ou no bom e velho papel. O livro foi feito de forma independente e todo lucro arrecadado é revertido para o projeto social Escola Kabiria.
Se gosta do que escrevo, considere adicionar à sua biblioteca ;)
📧 Cartas virtuais
Gosto da ideia de newsletter como cartas virtuais que chegam direto na minha caixa de e-mail, sem saber ao certo sobre o que a pessoa vai me escrever naquele dia. Sempre me surpreendem, me fazem refletir e tornam meu dia mais leve.
Algumas que adoro acompanhar: Refrescos, Uma Palavra, Queria ser grande mas desisti, Segredos em órbita, Tá Todo Mundo Tentando, Tem alguém aí?, Mulheres Falam
nãp é sempre que abro o computador... mas ler teus textos me deixam mais alegre. Voce consegue transmitir muita delicadeza e emoção no que escreve. Deve ser uma pessoa sensacional!!!Obrigada!!!