Diário de Viagens: Réveillon fora de época
#04 A primeira vez que ela viu o mar.
Praia do Rincão, 31 de dezembro de 2022.
A última vez que pisei nessa areia, minha sobrinha tinha um mês. Agora, com três anos completos, ela brinca com a irmã mais nova e a prima de quase dois.
Não foi só a quantidade de crianças na família que mudou. O murinho do vizinho onde tropecei na tentativa de bater o salve todos do esconde-esconde agora é uma grade alta. Caí de cara no asfalto e fui correndo chorar pra minha avó. Não tinha portão em casa alguma. O poste do esconde-esconde ainda está ali, intacto. Agora só serve para gerar luz. As estradas não tem mais rabiscos feitos com tijolo, da casinha do jogo de taco. Não vejo mais crianças correndo para pegar a bolinha na outra quadra. Nem ouço o som delas gritar "vai, vai, corre que dá tempo!"
O mercado da esquina agora é uma farmácia. A proprietária é carioca. Veio pra cá porque é mais tranquilo. É mesmo, hei de concordar. Ainda assim, a tranquilidade se faz dentro das cercas com plaquinhas de vigilância penduradas. Não encontro mais merthiolate na farmácia. Sorte que minha cria mal deu bola pros joelhos ralados.
A casa dos meus pais também não é mais a mesma. Nela havia uma janela colorida que dava direto no quarto deles. Era ali que batíamos, tarde da noite, pro pai abrir a porta de casa. A cerca de madeira branca, agora é marrom. A gente sentava em fila pra brincar de passa anel. Não lembro de quem era o anel. Só sei que essa era a última brincadeira do dia, porque se a gente corresse depois das dez da noite pela rua, algum "tio" ia nos mandar pra casa.
A vizinhança também não é mais a mesma. Os amigos de infância já não passam mais os verões aqui. Sei que já tem filhos e moram em outros lugares. Ficou só eu e meu irmão pra contar as histórias. Me vi apontando para tudo que nos rodeava, narrando cada lembrança para minha filha, que agora corre pelo gramado junto às primas construindo suas próprias memórias de verão brasileiro.
Ela viu o mar pela primeira vez. E ele continua igual. O mesmo mar que me derrubava quando menina, com a potência das ondas.
Nem a bandeira vermelha ou o vento forte, daqueles que arrastam areia arranhando as canelas, foi capaz de fazê-la parar de correr rumo à água gelada.
Pulou as ondas no colo do pai, que não via esse mar fazia mais de cinco anos. Eu os observava enquanto pisava na areia molhada. A mesma que, quando pequena,
fazia castelos
enterrava o pé
ralava o joelho
jogava bola
cavava buracos
catava mariscos.
Os mesmos que ela vê, e pega com as miúdas mãos, sem medo algum.
Notei que ao pisar na areia úmida da beira mar ela muda de cor. Enquanto as tatuíras passeiam na planta dos pés, parecendo pedrinhas que não doem mas fazem cócegas. Ou outra sensação que depois de anos ainda não sei nomear.
Igual presenciar minha filha sorrir e levantar os braços na primeira vez que viu o mar.
Tenho a impressão de viver múltiplos anos novos ao longo de um ano só. Eles chegam sem planos nem expectativas. Diferente do dia de hoje, 31 de dezembro, às vezes esqueço de parar para celebrá-los. As pequenas (e grandes) conquistas são atropeladas pelas próximas tarefas a cumprir. O mal da nossa geração.
Mas aconteceu na véspera de natal. Quando ela viu o mar pela primeira vez, nos braços dele. Vivi um mini-reveillon fora de época.
Taí, quem sabe esse seja um bom jeito de nomear.
Espero que 2023 traga muitos réveillons fora de época. Para todos nós.
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Por muitos réveillons fora de época! Feliz ano novo família!
🥺🥺🥺🥺