Foi num sebo em Amsterdam que encontrei aquela relíquia. After the Gold Rush, do Neil Young. Vinil usado, mas bem conservado, versão original de 1977, por 10 pilas. Dei um jeito de fazer caber na mochila. Eu não tinha mais um toca discos. Mas pouco importava. Não perderia a oportunidade de ter um dos meus albums preferidos a disposição para escutar quando quisesse. O toca discos veio logo em seguida e, com ele, a ideia de formar uma discoteca afetiva dentro de casa: quem passasse para uma visita poderia trazer um vinil — qualquer vinil — para a coleção.
Eu já morava fora do Brasil e, antes de me mudar, me desfiz dos mais de 100 Cds colecionados ao longo de vinte anos. Vendi ou presenteei quem eu sabia que ia cuidar bem e, mais importante, colocar os Cds para tocar. Ok, admito, alguns ainda estão dentro de uma caixa na casa dos meus pais, com a promessa de um dia voltarem a habitar minhas novas prateleiras, pois o desapego não superou as lembranças que eles me remetem.
White Trash, Two Heebs and a Bean do NOFX, herdado de um tio quando eu tinha em torno de dez anos. A gente passava as tardes sacudindo os cabelos compridos em frente as caixas de som, ouvindo aquele ritmo acelerado do punk rock, do qual não abro mão até hoje. The Bends, do Radiohead e o primeiro album do Ramones. Presentes do Petr, um tchéco que dizia que eu andava rápido demais para uma garota. Mais de dez anos se passaram e ainda não entendo sua relação entre velocidade de caminhada e gênero. A coleção do Nirvana, que moldou parte da minha adolescência. Tidal, da Fiona Apple, presente do pessoal que trabalhava na FOPP, loja de Cds em Cambridge, onde eu passava parte das minhas tardes me perdendo entre as prateleiras. Voltei pro Brasil com três camisetas novas na mala, dezesseis Cds e um bocado de histórias.
O tempo parecia passar diferente quando eu colocava um Cd para tocar e apreciava cada página de seu encarte. A arte, as letras, quem fez aquilo tudo acontecer. Ouvir um album inteiro apenas pelo prazer de ouvir, sem distrações ou obrigações inventadas em horas de descanso. Como agora. Enquanto Neil canta, eu viajo por todas as fases em que a música me acompanhou e o ato de ouvir um album evoluiu.
Passar horas sentada no chão de uma salinha da casa da minha avó admirando a vasta coleção de discos que pegava poeira no armário — de Roberto Carlos a The Cure — e entender a história por trás de cada um deles. A historia dos meus avós, da minha mãe e dos meus tios. Correr em direção ao aparelho de som portátil que ficava no meu quarto e apertar REC, quando tocava uma música legal no rádio e o único jeito de gravar era na fita cassete. Ouvir música no discman nas viagens da escola e torcer para que aquela lombada que fez a música pular não tenha causado um dano irreversível ao Cd. Esperar três dias para ouvir uma música baixada da internet — muitas vezes com qualidade pior que as gravações em fita cassete. Criar playlists e salvar em Cd virgem, com um título aleatório escrito com caneta permanente. “Nike 2003 =)”. Salvar 28 músicas num tocador de mp3 USB. E, atualmente, abrir o Spotify pelo celular e ter acesso a todas as músicas, literalmente, na palma da mão. Menos as do Neil Young.
Sorte a minha que comprei aquele disco.
Agora, chamo minha filha para colocar o bolachão com cuidado para tocar. Ela admira os grandes encartes, espia para ver o que tem dentro, faz o gesto de um disco rodando no ar. Eu conto a história dos poucos albums da nossa nova coleção. Aquele que foi comprado no mercado de usados da cidade onde ela nasceu, na Itália. Ou então, aquele outro que o amigo trouxe quando veio nos visitar do Brasil. Ou, o meu preferido, achado num sebo em Amsterdam.
Quando a agulha transforma aquelas finas linhas em som, minha menina levanta os braços me convidando a dançar. E assim, através da música, a gente vai construindo nossa nova discoteca afetiva.
Por falar em música…
Sobre trilha sonoras e memórias, texto da Carol Sandler.
Por que ouvimos músicas em idiomas os quais não entendemos?
Meu podcast preferido, sobre a história por trás de 90 músicas dos anos 90. (originalmente eram 60, mas para nossa sorte, aumentaram a lista!)
E não poderia faltar: Neil Young <3
eu sou adepta da prática de ouvir discos deitada no chão da sala hehe que texto gostoso de ler ✨️