Esse é o retrato de um sonho.
Nele há um quadro branco pendurado na parede do quarto de um capitão. Na sua cama, uma itinerante rabisca um papel rascunho com possíveis destinos para recomeçar. Ele faz o mesmo, do conforto de sua cadeira.
“Tem que ter água”— ele escreve. “Tem que ter transporte público que funcione” — ela diz. “Tem que ser fresco no verão” — eles repetem quase que sincronicamente. Ela não suporta o calor. Ele detesta mosquitos.
O quadro branco se encheu de nomes de chão calcado por ambos, por um deles ou por nenhum, não importava. “Esse vira um forno no verão”— risca da lista. “Esse não fala inglês” — mais um traço com a caneta preta. “Brexit” — fora. Em meio a linhas tortas, a lista virou singular.
Traçaram um plano rumo ao Velho Mundo. Não custava tentar.
Arrumaram as mochilas. Venderam livros, doaram livros, encaixotaram livros na esperança de os ter de volta um dia, aqueles especiais que marcam a gente de forma que fica difícil abandonar.
Se despediram dos pais, dos irmãos, dos amigos, aqueles especiais que marcam a gente de forma que fica difícil dizer adeus.
Empilharam num canto qualquer as sobras de uma vida que em breve viraria apenas lembrança.
Partiram para um deserto onde a água é tão densa que faz o corpo flutuar.
O plano mudou seu curso.
Esse é o retrato de um sonho.
Nele há um par de anéis de bronze, assimétricos e rústicos, contornando os dedos de um capitão e uma itinerante. “Sim” — ele disse, sorrindo com os dentes. “Sim” — ela disse, sorrindo com os olhos. Uma mesa repleta de locais distintos. De gente. De vida. Se esbanjaram. Não existia lugar no mundo onde a comida fosse tão saborosa como ali.
O plano voltou para os trilhos, com um leve desvio de rota.
Decidiram ficar. Não custava tentar.
Arrumaram um apartamento. Encheram de novos livros. Foram de encontro a uma nova vida. A outra veio ao encontro deles. Dois pares para um só sofá.
Penduraram na parede os registros das andanças que em breve viraria apenas lembrança.
O mar. O deserto. O calor escaldante. As torres ancestrais. O frio cortante.
Os passos que os fizeram chegar até ali.
Esse é o retrato de um sonho.
Nele há uma estante preta comprada em loja de departamento. “Tá tudo bem aí?” — ele pergunta enquanto aperta o último parafuso na parede. “Tá sim!” — ela exclama enquanto sustenta uma ponta da prateleira com os braços e uma vida com o próprio corpo.
Arrumaram o quarto. No lugar da mesa, berço. No lugar do mapa, banheira.
Mais livros. Aqueles para ler de novo, de novo, só mais uma vez.
Menos espaço no sofá. Mais espaço no peito.
O plano pediu pausa. Deram tempo ao tempo. Tempo às tentativas. Tentaram.
Mas para um capitão e uma itinerante o mundo é como um bairro, um pouco mais longo, um pouco mais largo. E o sonho, feito oceano. Sereno, mas nunca adormecido.
Esse é o retrato de um sonho.
Nele há desencontros. Ele partindo, ela chegando. Ela no andar de cima, ele no de baixo. Ele de uma lado da rua, ela do outro. Ela no trem, ele no mar. Ele tentando sem saber que ela também tentava. Ela tentando sem saber que ele também sonhava. Até que se esbarraram.
Os sonhos.
Se misturaram.
Se embaralharam.
Tomaram forma, cor, nome e endereço.
No quadro branco pendurado na parede. Em letras garrafais.
Se fundiram.
E depois de cinco anos, cinco casas, cinco vidas.
Depois de tropeços, acertos, recomeços.
Depois de braços cruzados, mãos estendidas, abraços demorados.
Em meio aos restos de existência espalhados pelos cantos.
Em meio ao plágio dos dias que se alongam e o tempo que não sobra.
Eles arrumaram mochilas, encaixotaram livros, doaram livros, receberam cartas, saudaram amigos.
Contemplaram o apartamento vazio que em breve viraria apenas lembrança.
Partiram rumo ao que faz o coração vibrar.
O plano, enfim, se concretizou. Não custa tentar.