Estação Vernon-Giverny. Trem com destino a Paris. Agosto de 2011.
Ocupava dois bancos. Um para ela e um para seu saco azul. Um saco daqueles de lixo, grande, com um nó na ponta. Através dele era possível enxergar um bocado de roupas coloridas.
Retalhos de sua existência.
Sentamos nos dois bancos vagos à sua frente. Eramos quatro estranhos em um trem. Eu e meu irmão. Ela e o saco azul.
Eu de frente para o saco. Ela de frente para meu irmão.
Seu véu na cabeça revelava sua crença. Sua pele enrugada revelava sua idade. Sua bagagem inusitada revelava sua classe.
Muçulmana. Velha. Pobre.
Era assim que existia através do olhar comum.
Resistia.
Fez pouco caso das minhas pernas e braços esbranquiçados à mostra, diferente dos seus, cobertos de pudor.
Se atentou foi mesmo à camiseta do meu irmão, preta com apenas uma imagem estampada na frente: o rosto de Charlie Chaplin.
Nos entreolhamos. Eu e ela.
Ensaiei um sorriso tímido, de quem não sabe ao certo o que dizer, mas sincero, de quem está disposta a escutar.
Ela riu. Gargalhou.
Colocando a mão em frente a boca e mexendo os ombros para cima e para baixo.
Silenciosamente.
Nos entreolhamos. Eu e meu irmão.
Com as testas franzidas, de quem nada entendera, e os olhares curiosos de quem desejava saber mais.
Com os dedos rugosos ela então apontou para a imagem gravada na camiseta. Voltou a gargalhar com os ombros.
Rimos, mudos, e passamos a concordar com a cabeça que aquele personagem era de fato engraçado.
Com o braço direito empurrou o ar para baixo. A palma da mão aberta, como se esmagasse algo em uma caixa para fazer caber.
Pequena.
Seus dedos contornaram um retângulo no ar. Esticou as antenas da TV.
Nos pusemos a assistir.
Suas mãos, então, começaram a balançar como se segurasse dois palitos num movimento para fora e para dentro, para fora e para dentro, para fora e para dentro.
As pernas mais famosas do cinema mudo.
Gargalhou com todo o corpo. Com toda a vontade. Na mais discreta euforia.
Era ali que cabia
na sua infância
pequenina
em frente a TV
com o riso largo
sem medo de ser
sem pudor
sem problemas
sem palavras.
Ao descer do trem, se perdeu na multidão.
Na Paris dos filmes ninguém nota
Ela e o saco azul.
Mas ela nota
os detalhes escondidos
estampados no corpo
de estranhos com quem esbarra.
E no saco carrega seus restos de existência
ou seriam suas memórias mais preciosas?
📚 A vida que ninguém vê
Um livro cheio de histórias intensas e reais, sobre pessoas que jamais virariam notícia na pauta convencional do jornalismo. Mas viraram. Pelos olhos e palavras de Eliane Brum. O livro reúne as crônicas-reportagens que eram publicadas na edição de sábado do jornal Zero Hora, no fim dos anos 90. Mas ainda assim tão atual. Leitura que mexe com a gente.