Estação central de Milão. Trem com destino a Treviglio. Junho de 2013.
Tirou do bolso da camisa amarelada o papel dobrado em quatro partes, gasto pelo tempo, marcado de fissuras tal qual sua pele.
O abriu e o aproximou de seus olhos cristalinos.
O afastou cerrando os olhos quase por completo na esperança de enxergar feito falcão.
Aproximou.
Afastou.
Aproximou.
Afastou.
Continuou nessa dança com as mãos até pousar o papel nas próprias pernas. Um formulário médico por preencher.
Apalpou o mesmo bolso a procura de algo que o permitisse escrever. Vazio.
Foi então em direção ao bolso faca da calça social preta. Aquela que veste quando acorda cedo para fazer nada, pois não sabe o que é descanso. Teme mudar o uniforme que por anos o fez digno. Trocar as calças Oxford por calças de abrigo seria sentenciar a própria morte. Lenta.
Passou a encarar o papel perdidamente. A sua frente, uma jovem estudante munida de lápis, borracha, marca texto e régua. Abriu seu estojo e tirou dali uma caneta azul. Estendeu-a em direção ao senhor.
Toma. Acho que era isso que estava procurando — ela disse com os olhos.
Obrigado — ele respondeu com um sorriso.
Começou a preencher o formulário carcomido. Agora suas mãos chacoalhavam. A que segurava o papel e a que segurava a caneta. Seus olhos acompanhavam o compasso verificando que ninguém notasse o tremelique.
Para cima.
Para baixo.
Disfarçava.
Pousava a ponta da caneta no papel e escrevia demoradamente.
D-O-M-E-N-I-C-O
Para cima.
Para baixo.
A jovem, notando o desconforto, desviava o olhar para o vagão lotado de gente cansada da vida na grande metrópole feita de promessas fáceis e falta de tempo para bom-dias.
Ele parou e se voltou à moça:
— Uma jovem como você oferecendo uma caneta para um senhor como eu?
— Ué, é só uma caneta.
— É muita gentileza de sua parte. Difícil encontrar jovens assim hoje em dia. Você não deve ser daqui.
E não era mesmo. A sabedoria do homem foi capaz de prever que aquela garota de traços tão parecidos aos seus, vinha de bandas distantes. Um lugar mais quente, onde o sol nasce dentro das pessoas.
Ela se sistemou e levantou rumando em direção à porta, enquanto o trem se delongava, dando sinais de estar chegando na sua parada. O homem continuou sentado. Ainda tinha um pedaço de viagem a completar. Ainda tinha um pedaço do formulário a preencher. Ainda tinha um pedaço de vida a concluir. Esperava.
Estendeu o braço afoito para devolver a caneta que bamboleava entre seus dedos tortos.
— Toma. É sua.
— Pode ficar. Você precisa mais dela do que eu.
— Mas você vai dar algo seu para um estranho no trem, assim, sem problemas?
— Tá tudo bem. É só uma caneta.
Encarou atônito a garota atravessar a porta de saída antes mesmo de saber seu nome, sua origem, seu endereço.
Pois para ele, não era só uma caneta.
Para ele era o indício de que ainda era percebido. Um lembrete para não mais esperar. Um presente para esperançar.
Esse é o primeiro texto de uma série de crônicas sobre Estranhos em um Trem.
Nas andanças por aí, o que nunca faltou foi conversar com desconhecido. Na rua (na chuva, na fazenda), no avião, no hostel, no ônibus, num café. Mas as lembranças que mais tenho vivas na memória são os diálogos com pessoas no trem. Acho que os assentos de frente para o outro provocam essa relação. Em viagens longas é difícil não criar uma conexão. Mas elas também acontecem em viagens breves, até aquelas rotineiras como ir ao trabalho.
Em eventuais sextas-feiras, na sua caixa de e-mail. Espero que gostem. :)
🎬 Modern Love
Inspirada nas crônicas da coluna Modern Love, do New York Times, essa série da Amazon Prime traz histórias curtas sobre diferentes tipos de amor. O terceiro episódio da segunda temporada foi o que mais gostei e, não à toa, conta a história de dois estranhos que se conhecem em um trem para Dublin.
Spoiler alert: tem até um easter egg de Game of Thrones.