“Você poderia descer e trocar de táxi? Aconteceu uma emergência e eu preciso ir pra casa". Foi assim, numa quarta-feira nublada em São Paulo que o taxista me abandonou, literalmente, no meio da estrada. Tive de descer as pressas antes que o semáforo abrisse e eu fosse atropelada por aquela multidão de carros.
Parecia que o universo estava tentando me fazer desistir daquele sonho. Começou com os ingressos. Esperei horas em frente ao computador para ter minha chance desperdiçada graças ao cartão de crédito recusado. Lembro do desespero indo atrás de uma alma caridosa que pudesse me emprestar um cartão para aquela ocasião, mas era tarde demais. Ingressos esgotados para o show de Porto Alegre — o mais perto da minha cidade.
Por um momento desejei voltar no tempo, onde filas para concertos eram reais e não virtuais e sempre se dava um jeito de conseguir ingressos na bilheteria, nem que para isso você tivesse que chorar em frente ao vendedor implorando por aquele mero papelzinho que dava direito a poucas horas de êxtase — e obviamente não estou falando sobre drogas.
Os planos de ir em companhia para o show do ano tinham ido por água abaixo. Mas, sabendo que essa seria provavelmente a única — e última — oportunidade de vê-los ao vivo, juntei todos os cartões de créditos que consegui e entrei novamente na fila virtual, agora para São Paulo.
Deu certo. Os ingressos. Achei que essa seria a parte mais difícil, até me encontrar sozinha em meio a uma estrada movimentada, sabe-se lá onde, abanando na esperança de que qualquer pessoa me desse uma carona até o show, já que o aplicativo do uber tinha me deixado na mão. Ninguém mandou insistir em continuar com um celular barato de Nairóbi.
Comecei a caminhar. Estava ainda distante do local, mas chegaria nem que fosse a pé. Nem que fosse na última música. Eu estava ali e não perderia isso por nada. Se Keith Richards ainda conseguia respirar, depois de todo estrago, eu também conseguiria caminhar trocentos quilômetros pelas ruas de São Paulo.
Tamanha foi minha persistência que o universo desistiu de acabar com meus planos e me presenteou com um taxista camarada. Roberto, o nome dele. Tinha seu contato salvo no celular até pouco tempo atrás, quando o perdi pra máquina de lavar.
Cheguei no estádio, apresentei meu ingresso impresso em folha A4 pensando que não teria nem um papelzinho bonito pra guardar de recordação. Fiquei parada um tempo contemplando o banner gigante da língua de fora mais famosa do planeta — e não era a do Albert Einstein.
Foi minha mãe quem os apresentou, meio sem querer. “I can't get no satisfaction” ela cantava alto num inglês enrolado, balançando a cabeça, enquanto a música embalava um filme na TV.
É real? Não pode ser. Nunca imaginei que a vida me traria essa possibilidade. Mais pela idade deles do que minha, claro. Todos os outros músicos que admirava já tinham morrido ou parado de fazer grandes turnês.
O palco se apagou. A chuva cessou. Borboletas no estômago. Um estouro. BOOM! Das caixas de som sai o riff de Start me up. Eles aparecem em meio a fumaça. Keith foi o primeiro a fisgar meus olhos. De repente ficou tudo embaçado por uns segundos. Ingênua, achei que fosse novamente a chuva. Fiz das mãos parabrisa.
Era real. Pulei feito criança. Cantei até perder a voz. Dancei em meio a multidão. Volta e meia repetia mentalmente EU TÔ VENDO OS STONES AO VIVO, CARALH*****, só pra ter certeza que era verdade. E foi. Guardei comigo a melhor recordação daquele dia: o prazer de poder contar essa história. No fim é isso que a gente leva da vida, né?
(Para saber mais sobre o show, essa matéria conta os detalhes)
Como de costume, quando cheguei em casa após o show anotei num caderninho os momentos que mais me tocaram daquele dia — que depois de cinco anos deram origem a esse texto. Entre os destaques, lá estava: Mick usava paetê, Keith e Ron como sempre emperequetados e Charlie usava apenas uma camiseta amarela. 💛
Charlie Watts era meu Stone preferido. Lembrava até a data de aniversário todo ano - justamente por ser um dia após o meu. Junto com Keith Moon, era um dos bateristas que eu mais admirava no rock. Logo os dois completos opostos, inclusive no jeito de tocar o instrumento.
A morte de Charlie despertou um pequeno vazio. Daqueles que fazem a gente lembrar que nada dura pra sempre. Mas sobrevive de alguma forma — nesse caso, a música. E isso é muito mais poderoso.
Você também tem uma banda que curte muito, assim, muito mesmo? Ou qualquer shuffle do Spotify é suficiente? Conta aí pra gente :)
📚 Vida
De todas as coisas absurdas que Keith Richards já viveu, a que mais me deixou surpresa foi ele ter sido escoteiro quando criança. Na autobiografia Vida, o guitarrista do Rolling Stones conta desde sua infância, como conheceu Mick Jagger, como a banda começou, a fama, as férias na Jamaica, subir em coqueiros e cheirar as cinzas do próprio pai. Eu adorei a leitura, mas sou suspeita a falar.
🎸 A arte do rock
O livro por si só é daqueles que enfeitam qualquer estante. Pra quem gosta de música, arte, fotografia, discos e/ou histórias. Nele são analisadas capas de discos de bandas — entre as quais Rolling Stones, Pink Floyd, The Who, Led Zeppelin, Queen — contando a história por trás delas. Como, por exemplo, em Animals, do Pink Floyd, o porco que flutua na imagem era um balão de gás hélio que causou alguns problemas na Inglaterra. Tem também a capa de Sticky Fingers, dos Stones, com o ziper que se abre revelando uma cueca. Ousados.
Pra mim, nada supera a capa de Todos os Olhos do Tom Zé, que burlou a ditadura de 1971 e continua uma incógnita até hoje. É boca ou é c*?
🎶 Falando em discos
Para ouvir hoje, qualquer coisa dos Stones, é claro! Vou deixar a música título deste boletim, que faz parte de um dos meus discos preferidos.
🎬 1971: o ano em que a música mudou tudo
Rolling Stones, Beatles, David Bowie, Aretha Franklin, Elton John, Carole King e muitos outros nomes da música, nesta série documental que conta a história conturbada daquele ano (focado nos Estados Unidos e Inglaterra) e a influência da música naquele período. Essa resenha, da Flows magazine, dá uma ideia do quanto o documentário é bom. Aliás, #ficadica dessa newsletter também.