2014
— Finalmente alguém per parlar italian con me — ela me disse, quando voltei de sua terra de origem.
— Ciao nonna, com'è?
Proveniente do Veneto, ela fala um dialeto que pouco compreendo.
— Non ho capito un cavolo. — eu respondo, sorrindo.
— Oh signor!! Parli quel italian strano.
— Io?!
2024
— Ciao! Io sono ITALIANA! Il mio papà è SOLO brasiliano. — ela disse, frisando o que achava de extrema importância, ao taxista que acabara de nos dar uma carona no aeroporto de Bologna.
— Davvero?
— È sì. Io sono nata qui.
Apoiava os braços na barriga de quase nove meses, quando a vi pela última vez através da tela do celular. Ela pouco falava. Nem parecia a mesma pessoa que, um mês antes, dividia uma taça de vinho comigo (eu, água) na mesa da cozinha, enquanto abria o livro que eu escrevera com uma dedicatória à ela. Também por chamada de vídeo, como foi toda a minha primeira gravidez, sem abraços de quem quero bem.
— E la butela, quando arriva? — ela me perguntava.
Gravou um vídeo onde dizia que sentia tanta saudade que se me abraçasse, o bebê nascia.
O bebê nasceu.
Trinta e quatro dias após ela partir.
Minha filha, agora com 3 anos, não pôde conhecer a tataravó, que se foi aos 94. Mas ambas carregam a língua italiana como traço marcante de identidade.
V. me questiona, com curiosidade e afeto, sobre a pessoa que só conhece através de histórias. Quer dizer que existiu alguém na nossa família com a qual ela poderia conversar em italiano?
Seus olhos brilham e ela me faz muitas perguntas. Por que só eu, sua mãe, domino a língua que já foi da minha bisavó? E o restante?
Os motivos dos quais a língua não ter sido transmitida de geração em geração são muitos. Um deles, a Segunda Guerra e o Estado Novo, proibindo imigrantes de falarem um idioma que não fosse o português. Nonna contava que falavam baixinho à noite enquanto militares rondavam as casas, vigiando o uso de línguas estrangeiras.
Ainda assim, expressões e palavras sempre navegaram em conversas de família. Músicas em dialeto continuam embalando os almoços de domingo.
A língua persistiu do jeito que deu.
A gente deixa muita coisa para trás quando muda de país. Mas a linguagem vem na bagagem. Trejeitos, costumes, cultura.
Identidade.
Foi na Itália que V. abriu os olhos pela primeira vez, deu o primeiro sorriso, comeu a primeira fruta fresca, viu o primeiro pôr do sol, ouviu as primeiras histórias. Foi ali que ela recebeu os primeiros presentes, mimos e visitas dos italianos que a rodeavam. E pitacos no meio da rua, comentários na fila do correio e da farmácia. Foi na Itália que formamos nossa piccola famiglia.
Italiano é, pra gente, língua de afeto.
V. me pergunta sobre o lugar onde nasceu. Todo ano reservamos uma semana para explorar suas origens e criar lembranças com as pessoas que fizeram (e ainda fazem) parte de sua história.
Explora cidades históricas de pés descalços, se despe para tomar banho de mar em plena noite. Se lambusa de sorvete, abraça garçonetes.
Livre. Leve. Lar.
“Io sono nata qui.”
A gente usa a língua não somente para se expressar. A língua também serve como meio de pertencer.
Nonna navegava entre um italiano arcaico e um português misturado. Pisou em Roma, já adulta, uma única e última vez. Mas sempre carregou a Itália dentro de si.
V. navega entre diferentes idiomas de acordo com o contexto e as pessoas. É mesmo de se admirar, vindo de um ser tão pequeno.
Quando em sua terra natal, usa e abusa do vocabulário que dispõe, com a liberdade de quem não tem nada a temer.
Na bagagem também trouxemos muitos livros, os quais líamos de acordo com seu interesse. A noite, antes de dormir, somente o português era a língua de conforto. Livros em outro idioma eram lidos em português.
— Mãe, esse livro está em que língua? — ela me perguntou, um ano atrás.
— Em italiano.
— Você pode ler em italiano, por favor.
E hoje dorme ao som da minha voz, um italiano carregado de sotaque e misturas, como o da minha bisavó, sua tataravó. Que não teve a chance de pegá-la nos braços mas ainda vive através de sua língua de origem.
Afinal, língua também é memória.
Que delicadeza esse seu olhar...
Muito lindo, Nike. 🥹💕