Escrito em 14 de Junho, 2023.
Uma vez um garoto me disse que eu era estranha — e acredite, isso soou como um elogio — porque parei no meio da rua para apontar para a lua como se a visse pela primeira vez.
Em outra ocasião um moço me disse que eu estava bêbada — e acredite, naquele momento eu estava sóbria — porque sentei no meio do deserto e apontei para as estrelas como se as visse pela primeira vez.
Anos atrás um desconhecido me chamou de distraída — e acredite, ele estava certo — porque parei em meio a fila do mercado para contemplar o pôr do sol multicor refletindo na janela, como se fosse a primeira vez.
Dia desses minha filha apontou para a lua e disse "eu achei mamãe, tá ali, a luna". E lá estava Ela, no alto, com um sorriso tão leve que era mesmo um achado em meio ao céu alaranjado degradê.
Todo dia, quando a lua aparece, seja na escuridão das duas da tarde ou em plena luz da noite, V. aponta para o céu como se a visse pela primeira vez. A luna, a luna! Ela é sempre a primeira a encontrar.
Ao olhar para o alto, ela me faz notar os pássaros, o avião, a gaivota, a Luna. O som das coisas. "O pássaro falou." “Isso é um helicóptero.” Olha o avião! Está indo para longe.” “Olha, mamãe, olha, a gaivota!”. As nuvens grandes, pequenas, suas formas e movimentos. “Parece um…hmmm…boi!” “O sol fugiu.” “Olha, acenderam o sol de novo!”
O céu azul, rosa, laranja, por vezes cinza — "tá bonito o céu hoje". Enxerga beleza até nos dias nublados.
Acontece diariamente — acredite. Sentadas na caixa de areia ou parando repentinamente em meio a calçada. Sempre a apontar pro alto. Quem sabe alguém há de pensar que somos garotas estranhas, embriagadas e distraídas.
Ontem eu vi um anúncio no metrô: Sky high views of Stockholm, prometendo belas vistas do céu a 85 metros do chão. Tinha até um QR code para garantir seu bilhete. Me parece um tanto besta pagar para ver algo onipresente em qualquer ponto do planeta. Não seriam essas pessoas estranhas, embriagadas (por likes?) e distraídas?
Já que para observar a beleza do céu, basta olhar para cima. Como V. me lembra todo dia.
Escrever esse texto me lembrou dessa música que eu tocava para minha filha ainda no barrigão — e cantei muitas vezes para ela dormir.
(Para V.)
Queria escrever sobre o dia em que você disse “mamãe, você é minha melhor amiga”. Foi o presente mais doce que recebi no meu aniversário de trinta e três.
Queria escrever sobre nossas viagens recentes. Sobre ver antigos amigos na Irlanda. Te ver correr nas vielas de Borghetto na Itália. Sobre sentir entusiasmo em ir ao parque da Peppa como se fosse os antigos festivais de Rock que por muito frequentei. Sobre como minhas prioridades mudaram após te pegar em meus braços pela primeira vez. Sobre a minha própria infância que me atravessa quando você dança comigo na cozinha ou entra no escritório enquanto eu trabalho “mamãe, mamãe, o que cê tá fazendo?” ou ao te ver correr num corredor.
Queria escrever sobre as palavras dos adultos, elas não fazem o menor sentido. Corredor é feito para correr e adultos insistem em apenas andar silenciosamente neles. Se fosse para caminhar, chamaria caminhador, não?
Queria escrever sobre como você me faz perceber as miudezas da minha língua, sem ao menos conhecer as regras gramaticais. Sobre como conjuga o verbo no Português tal qual em Sueco. Sobre seu sotaque que vem de lugar nenhum e ao mesmo tempo de todos os lugares juntos. Sobre nossa língua misturada — existe até palavra pra isso: hibridismo. Mas seu pai hoje me falou uma mais legal: amalgamado. Achei bonito. Vou dizer que a gente fala um idioma amalgamado. O contraste do soar culto para nosso falar embaralhado.
Queria escrever sobre coisas interessantes, mas tudo que consigo é escrever sobre o banal. Sobre as coisas que encontro no meu bolso. Suas pedras-tesouros. Mirtilos secos. Folhas coloridas. Farelo de bolacha salgada. Sobre como você penteia o cabelo diante do espelho e se observa sem julgamentos. Sobre como me lembra todo dia que a vida é isso, afinal. A gente dançando no meio da rua e voando num avião imaginário e você rabiscando minha agenda de trabalho enquanto eu trabalho de casa, pois a escolinha ainda está de férias, e os livros que lemos todos os dias e noites, como o do menino, da toupeira, da raposa e do cavalo. É um livro muito bonito.
Queria escrever sobre os breves momentos em que aprecio fazer nada. Nada. Absolutamente nada. Sentar no chão do parquinho, enquanto você cozinha bolos de areia deliciosos, e apenas observar. Você não deixa escapar um detalhe. É tudo tão ordinário e ao mesmo tempo tão extraordinário. Tipo olhar pro céu. Tem coisa mais banal e, ao mesmo tempo, mais magnífica do que observar a imensidão que nos circunda?
Sobre tudo que queria escrever, escrevi. A mão. Meus rabiscos seguem espalhados em pequenos caderninhos pela casa, a maioria deles dedicado ao dia a dia com a minha filha. Às pequenas coisas.
Faz meses que não escrevo neste espaço da internet. De uns tempos pra cá, me parece mais uma rede social e, pra quem tá longe disso há mais de ano, bate um leve cansaço. Ou pode ser só preguiça. Ou falta de tempo. Ou outras prioridades. Ou tudo junto. Sigo lendo muitos textos que chegam no meu e-mail e deles surgem outros textos na minha cabeça — esses acabam ficando por ali mesmo: na minha cabeça.
Dizem que a escrita nasce antes mesmo de tocar o papel (ou o teclado). Hei de concordar. Minha mente borbulha e eu sigo escrevendo. Sigo jogando palavras no mundo, até quando o mundo são só caderninhos. Que no momento se encontram dentro de caixas.
Logo me mudo de novo. Mas só de bairro. Preciso terminar de organizar as coisas. Se ainda está aqui, até breve. E obrigada. :)
Mais um texto fenomenal!! Continue registrando tanta coisa linda que vc ve no mundo que isso vai florecer e inspirar muitos!!!
Haaa seus textos ❤️ que lindeza! As pequenas coisas...