Cremar parece a melhor ideia.
Me peguei questionando enquanto vagava pelas ruas de Estocolmo e fui parar dentro de um cemitério. Turistas batiam fotos das lápides e das árvores. Fingi ser um deles, até porque as vezes é isso que ainda sinto aqui, e parei por um momento para contemplar o cenário. Fazia sol e 10 graus. Luz e frio. O tempo que mais gosto.
Parada diante da contraditória paisagem, me surgiu a dúvida: onde será que serei enterrada?
A maior parte da minha vida foi vivida no Brasil. Foi lá que nasci. Foi lá que dei meus primeiros passos, falei as primeiras palavras, escrevi os primeiros textos, me formei na faculdade. É lá que mantenho os mais preciosos laços.
Minha vida adulta foi construída na Itália. Foi lá que casei, trabalhei por mais tempo no mesmo lugar, adotei dois cachorros, mobiliei um apartamento. Foi lá que pari minha filha.
Agora, minha vida depois dos 30 se faz na Suécia. Foi aqui que criei amizade com outras mães e pais, com outros imigrantes. É aqui que me redescubro a cada dia, seja no novo trabalho ou ao ver minha menina se tornar cada vez mais independente de mim, e eu, independente novamente.
Nos últimos dias também surgiu outra questão: onde diabos vou me aposentar? Tendo tido a carteira assinada nesses três países e a consciência de que há chances de que até lá eu já esteja aproveitando minha velhice em outro lugar. O Algarve em Portugal, talvez? Ou ao sul do Vietnã? Ao que tudo indica, ainda trabalhando.
Tudo isso ainda parece muito distante. Aposentadoria. Morte. Nada que gire em torno de minha mente com frequência. Diferente do que aconteceu ano passado, entre setembro e outubro.
Recebi três cartas pelo correio. Três convocações para votar. No Brasil, na Itália e na Suécia. Sendo cidadã dos dois primeiros, e residindo no último, me foi dado esse direito. Meu marido, tendo morado pelo mesmo período na Itália e na Suécia, não teve o mesmo privilégio. O que nos diferencia é o simples fato de eu possuir dois passaportes — um brasileiro e um europeu. Mas por vezes não me sinto brasileira. Esqueço palavras. Traduzo minha língua materna. Tampouco me sinto europeia. Não foi aqui que cresci. Certos costumes ainda me são estranhos.
Vivo num limbo. Brasileira demais para uma europeia. Muito europeia para uma brasileira. Um pouco de tudo e muito de nada. Uma mistureba. Un casino, diria minha nonna, se ainda estivesse por aqui.
Quando piso no Brasil, após sete anos morando fora, me sinto uma turista privilegiada. É aqui que passo férias. Numa praia pequena e pacata no sul. Numa casa grande cercada de familiares. Meu Brasil é diferente. Não há rotina. Há pouco risco. Eu chego com data marcada para ir embora. Ainda assim, é sobre lá que busco me informar, toda vez que abro o jornal. Deixei um pedaço de mim.
Quando bate saudade, é a Itália que me vem à mente. A comida, o idioma, as expressões, os gestos. A vontade de viver. A postura de encarar tudo de frente, sem medo. Busco referências em músicas e séries, por mais banais que sejam, só pra sentir o conforto de ouvir e ver italianos sendo...italianos. Como ainda me consideram no papel, mesmo sabendo que o tempo vivido por lá também tinha prazo de validade. Deixei outro pedaço de mim.
Quanto à Suécia, ainda me sinto a turista contemplando o cemitério. O mesmo que encontrei enquanto me perdi pela cidade atrás de um brechó. Me perdi porque ainda não navego com facilidade por aqui. Ainda não falo o idioma. Ainda não tenho um bar preferido. Ainda não pertenço completamente. Mas cá estou, com meus muitos pedaços.
Até lá, se a natureza seguir seu rumo, é provável que esse se torne meu lar definitivo. Mas, por precaução, melhor me cremar. Espalhar as cinzas por todos os cantos que vivi.
Todos os cantos os quais nunca deixei de pertencer.
Uma das coisas que mais gosto sobre morar em Estocolmo é a diversidade. Gente que vem de diferentes lugares, falam diferentes idiomas, famílias com diferentes nacionalidades. Dia desses conheci uma colega que nasceu na Suécia, cresceu na Espanha mas em casa falava árabe, idioma dos seus pais. Agora cria os quatro filhos na Suécia, novamente. Ao perguntar da onde ela era, ela não sabia responder. “Me sinto mais pertencente da Espanha” ela disse. Me pego pensando em como minha filha vai encarar essa questão futuramente. Tendo nascido na Itália, crescido na Suécia (é o plano) mas convivendo com pais brasileiros. O privilégio que é crescer com tanta mistura mas também as questões quanto a identidade e pertencimento. Acredito que a gente sempre vai se encaixar onde tivermos pessoas que nos façam sentir em casa. E isso é o que não falta! 💛
Por falar em filha, ela está completando dois anos de vida hoje. Um pequeno passo para um bebê, um grande passo para uma pirata espacial! 🚀
Aos 2 anos
Você dá abraços longos feito melodias clássicas
Escala o sofá como um alpinista no Everest
Corre mais rápido que um guepardo
Observa atententamente feito uma coruja
Você ri
Aquele riso inocente que só criança dá
E acha graça
Em rir junto com a gente
Só pelo prazer de gargalhar
Você sente
Sente muito
que as vezes chega a explodir
E eu sinto
Sinto muito
Que as vezes não lhe posso acudir
Você fala mais que um papagaio
Repete, repete, repete
Até que eu confirmo o que você
Fala, fala, fala
Não importa o idioma
Até parece que
Aos dois anos
Já entende que certas palavras
Fazem mais sentido
Em determinadas línguas
Tipo feliz aniversário
Que sempre soará pra mim
mais bonito
Em português
Mas quem sabe pra você
Não tenha muita diferença
Entre Auguri, Parabéns
Happy birthday, principessa
Javisst ska du leva uti hundrade år!
Esse negócio de ser cidadão do mundo tem dessas coisas. Sou um brasileiro num possível plano de sair do país, mas acho que vou me sentir como vc. Cidadã do mundo com um pedaço do peito em cada lugar.
Quanta poesia!!! .... eu tão enraizada aqui no Brasil, me sinto abraçada quando leio teu texto.... que voce sempre se sinta em casa onde quer que esteja!!!