Quando comecei a cursar Design de Moda eu me sentia bastante deslocada. Não me interessava pelos desfiles, as tendências da estação e as inúmeras cores que inventavam. Gostava da história por trás das roupas, da matemática aplicada para construí-las. Tinha muitas perguntas genuínas que, para minhas colegas, eram um prato cheio de humor.
Eis que ainda na primeira fase, precisávamos escolher a cor para camiseta do evento mais importante do curso. A discussão estava calorosíssima em torno da tal da cor goiaba. Para mim, até então, goiaba era só uma fruta.
— Desculpa, gente, mas essa cor goiaba…é a cor de dentro ou de fora da goiaba? — eu perguntei, lá do fundo da classe.
Era a cor de dentro. O que me fez levantar o braço novamente e questionar se estavam se referindo à goiaba com miolo branco ou rosa.1
Todo mundo riu. Eu não achei graça nenhuma. Era mesmo uma legítima dúvida a ser sanada, como “por que vou usar salto se me doi os pés?” ou “por que um pinto estaria feliz no lixo?”2 Ou “por que o Bono conta “uno, dos, tres, catorce” em Vertigo?”.
“[…] não há nenhuma maneira possível de uma criança perguntar sobre tudo que os adultos falam que a faz pensar “Ahn?”. 3
Ursula K. Le Guin, no livro Sem tempo a perder.
— O que é isso? – V. perguntou, apontando para algo grande, marrom e fedorento, estendido no meio da estrada.
O cocô de cavalo era mais interessante que o Palácio do outro lado da rua. Afinal, não era um cocô qualquer — era um cocô de cavalo real da Inglaterra. V. se abaixou a milímetros do elemento, em meio a multidão que ia e vinha na estrada, e esticou o braço, quase tocando na merda.
— Uaaaau!!! — ela exclamou — um cocô de cavalo de verdade!!
Ficou ali por um bom tempo, encarando o cocô com interesse e entusiasmo.
Foi com esse mesmo espírito que chegou em frente ao Buckingham Palace, só pra dar de cara com os portões.
— Ué, eu quero entrar na casa da rainha. Por que não posso?
Um certo dia, V. achou uma tiara de coroa no brechó. A partir de então, a tiara não sai mais de sua cabeça. Coloca até em cima do gorro.
— Bom dia, garotinha!
— Garotinha nada! Eu sou a princesa Valentina! — diz, convicta, e sai galopando seu cavalo de pau pelo apartamento.
Não sei ao certo de onde veio a referência. Não lemos livros com princesas, lemos livros com meninas piratas. As vezes ela também é pirata mas, na maioria, é princesa. As vezes é os dois, por que não? Fato é que desde que descobriu que ainda existem rainhas de verdade no mundo, isso tem feito parte do seu repertório imaginário. Com a diferença de que essa princesa é gente como a gente, e sai regalando abraços a seus súditos (vulgo papai e mamãe). E a vantagem de que seu cavalo não faz cocô pela casa.
Estávamos no centro da cidade de Estocolmo. Ao saber que por aqui também mora uma rainha, V. quis prontamente conhecer seu palácio. Porém, ao chegar, deu de cara com o portão. De novo.
— Cadê o interfone?
— Acho que não tem, filha.
— Ah, eu queria apertar no interfone pra falar com a rainha!
A decepção de não conhecer a rainha em carne, pele e osso logo deu lugar a curiosidade. Um guarda real estava bem a sua frente, ao lado do portão sem interfone, e V. prontamente acenou para ele, buscando uma resposta.
A resposta não veio. O guarda mais parecia um manequim de vitrines de lojas de calçadão. Parado. Apático. Inanimado.
V. o encarava minuciosamente. Cada detalhe. Olhava diretamente nos olhos do guarda-manequim buscando contato. Acenou novamente, dessa vez sem dizer uma palavra.
Nada.
— Eu posso dar oi pra ele? — perguntou meio acanhada.
— Claro! Mas pode ser que ele não responda de volta.
— Por que?
— Porque os adultos inventam regras estranhas.
Eu achei que levaria mais tempo, essa fase da criança questionar as coisas.
Os porquês que me são direcionados não se perdem em um looping infinito. Estes são pontuais. E deveras instigantes para uma garotinha — digo, princesa — de dois anos e meio.
Às vezes eu rio. Ela diz que não tem graça nenhuma. Mal entende que no meu sorriso também mora sua inocência.
Ela me olha procurando todas as respostas.
Mas sigo sendo a garota do fundo da classe.
Tenho muito mais perguntas.
É a goiaba com miolo rosa. Ou seja, a cor é rosa claro.
Do ditado “Mais feliz que pinto no lixo”.
Primeiro: os adultos inventam regras estranhas < genial.
Segundo: se o Cabral não te cantou com "mas V., você conhece uma rainha, a mamãe!" ele perdeu a oportunidade.
Ser mãe é fucar totalmente exausta e, ao mesmo tempo, totalmente maravilhada com essaa perguntas todas que brotam sabe-se lá de onde, direto pra cabecinha dos pequenos. <3