O texto a seguir faz parte de um amigo secreto entre escritores de newsletter, do qual estou participando. A ideia é escrever uma carta ao amigo secreto baseado em um de seus textos ou temas. Os spoilers estão todos no fim da carta :P
Querida amiga,
Quando chegamos aqui, há exatos um ano e dezessete dias, logo percebemos uma certa indiferença das pessoas à nossa volta. Ninguém pareceu notar a mulher sozinha com um bebê num braço, tentando pegar as bagagens da esteira com o outro, arrastando-as para o banco mais próximo. Ninguém deu a mínima pro cara com dois cachorros na coleira e duas gaiolas enormes empilhadas num daqueles carrinhos de aeroporto. Não tínhamos mão suficiente para atravessar o portão de desembarque e esperamos um tempo até que alguém se dispusesse a dar, literalmente, uma mão.
Estávamos confusos. Cansados. Partimos de um lugar onde oferecer ajuda era igual dar bom dia — todo mundo o fazia. Isso vinha com uma dose de invasão da vida privada, mas eu não teria problema nenhum em explicar para um desconhecido que estava me mudando — de novo — se o mesmo me ajudasse com as bagagens.
Achei estranho o fato de sermos os únicos no aeroporto a vestir máscaras. Era 2021, já estávamos vacinados, mas vínhamos de um país que ainda vivia de restrições e precauções. Não à toa, a Itália foi o primeiro na Europa a sentir na pele as dores da pandemia e nós a sentimos junto.
As pessoas nos olhavam desconfiadas. Já não sei mais se pela máscara, por sermos imigrantes, pelo excesso de mochilas e cachorros e bebê ou se pelo conjunto todo. Um pouco do que você viveu aqui no início da pandemia, quando escreveu: “Aguentamos os olhares julgadores e os cochichos no metrô, logo aqui nesse país onde apontar o outro é considerado falta de educação.”
Fizemos pouco caso. Ainda estávamos um pouco céticos em acreditar que tínhamos, finalmente, chegado aqui. No caminho para o apartamento, que hoje chamamos de casa, eu mal conseguia ver a cidade, pois às quatro da tarde a escuridão já tinha mesmo tomado conta de tudo. Tampouco consegui prestar atenção na música que tocava no rádio, pois minha filha chorava de cansaço na cadeirinha do táxi. Assim que o carro estacionou, ela cessou.
Foi seu companheiro quem nos recebeu na porta do prédio, com as chaves do apartamento, um abraço apertado e um sorriso no rosto. Eu só o conhecia pelas histórias que meu marido contava. Ele nos acolheu com frutas e biscoitos de açafrão. Para quem tinha passado o dia com uma brioche, aquilo era um banquete. Não muito depois, um amigo sueco veio nos visitar. Passou a noite nos advertindo sobre como seria difícil a adaptação por aqui. Brasileiros que passaram anos na Itália. A Suécia, meus amigos, é muito mais fria. Em todos os sentidos.
De frio, devo admitir, só achei as temperaturas. Meu primeiro contato com o sistema público para dar conta das mil e uma etapas burocráticas de se registrar aqui foi sensacional. Assim como o segundo, o terceiro, e as tantas outras vezes que precisei. Organização. Disponibilidade. Ninguém gritando na sua cara ou te fazendo esperar um dia inteiro para recolher suas digitais. Eu não acreditava. Chegava em casa com a sensação de que tudo era muito bom para ser verdade. O que deveria ser o normal para todos — tratar qualquer ser humano com respeito e dignidade — acaba se tornando um choque cultural.
Em menos de um mês já conhecia mais gente do que em cinco anos de Itália. Na sua grande maioria, mães e pais. Imigrantes, suecos, misturados. Aos poucos me vi imersa em uma Estocolmo que acolhe pais e mães e bebês e carrinhos de forma tão aberta. Seja pelos inúmeros parques, eventos, iniciativas do governo como educação e saúde de graça e licença parental de 240 dias, independente se você é empregado ou não. De novo, a norma que nos choca. O luxo que tantos nem sonham, por nem sequer acreditar que seja possível. Almejam o que é vendido como luxo, aquele supérfluo de magnata no Brasil, como bem pontuantes:
(…) qualidade de vida não deveria ser uma responsabilidade individual. Ninguém deveria depender da exploração direta de outras pessoas para ter o mínimo de dignidade para viver. E ninguém deveria precisar ser explorado, ou abrir mão de sua própria subjetividade, para permitir que outros vivam suas vidas de pequenos magnatas.
Eventualmente nossa lua de mel com o país nórdico acabou. Mais cedo do que a de muitos amigos brasileiros que se mudam pra cá. Quem sabe pelo fato de já estarmos na Europa a mais de cinco anos. Ou quem sabe por termos mais contatos com suecos. Ou quem sabe porque estamos virando dois velhos ranzinzas.
Dia desses me vi reclamando do auxílio parental ainda não ter sido aprovado. O Felipe (você sabe, meu companheiro) achou engraçado eu reclamar de algo que nunca tive direito em outro país que vivi. Daí lembramos como o sueco padrão confia cegamente no sistema, a ponto de não questionar o porquê das coisas, nem ao menos se perguntar se realmente não faria sentido usar máscara em meio a uma pandemia.
Temos a sensação de que só se reclama do que não se pode controlar. Muitas vezes com bilhetinhos na porta. Seu cachorro latiu hoje, isso me incomodou. Cachorros latem, crianças choram, no inverno faz frio. Também reclamam dos roubos de bicicleta, a máxima da falta de segurança. Com todo o respeito, às vezes dá vontade de rir.
Viver em um lugar sem muros ao redor dos prédios onde área comum é, literalmente, o bairro inteiro; ter acesso aos parques de qualquer escolinha fora do horário de aula pois os portões ficam propositalmente abertos para isso; sentar no metrô com o celular na mão e andar na rua tarde da noite sozinha — sim, dá vontade de rir mesmo.
Acredita-se que o norte da Europa é um paraíso sem defeitos e se eu falo uma coisa ruim, automaticamente todo o resto de bom se dissolve. Ou quando eu falo das coisas boas, as pessoas acreditam que não existem as ruins. É complicado porque as conversas se tornam fonte de opiniões absolutas.
Não existe lugar sem defeitos. Assim como não existe território demarcado no planeta Terra que seja livre de problemas.
Tenho de concordar com você. Não existem lugares sem defeito. E a Suécia tem um bocado deles, como qualquer outro lugar no planeta. Mesmo assim, no fim do dia (que em muitos dias nem tem fim) ao olhar pela janela, a neve iluminando a cidade, eu agradeço em silêncio o privilégio de poder ver minha filha crescer nessa terra que aos poucos se torna lar. Também carrego o pesar de saber que o normal aqui é exceção a regra em quase todos os lugares.
Foi em Estocolmo que também tive o privilégio de te conhecer tempos atrás. Dividimos vinho, lasanha, histórias e gostos em comum. O maior deles: a escrita. É através de suas experiências traduzidas em palavras que vou me conectando cada vez mais com você e com essa terra gelada. É isso, afinal, que almejamos quando mandamos um texto para a caixa de entrada de quem nos confiou, não é? Criar laços através das palavras. Que bom poder dizer que somos amigas para além da palavra também.
Dia desses caí um tombo na neve e lembrei do seu conselho: a questão não é SE você irá escorregar, mas QUANDO irá escorregar. Pois aconteceu. Andando com os cachorros na floresta, escorreguei em cima de uma rocha e, quando vi, já estava com a bunda no gelo. Tenho muito a aprender ainda nesse lugar.
Lá fora faz -11°C, mas hoje o sol brilha. Gosto dos dias assim, porque os raios solares refletem na neve acumulada nos galhos secos das árvores e tornam o cenário meio alaranjado. Você já reparou, Nessa?
Com amor,
Munike
Ps.: sua tigela de lasanha ainda está aqui. E tem garrafa de vinho pronta para ser aberta ;)
🪐 Segredos em Órbita
As citações da carta acima foram retiradas desses dois textos da Vanessa Guedes, autora de uma das minhas news preferidas - Segredos em Órbita.
💌 Também recebi minha carta em formato newsletter, da Lethycia Dias, autora de Uma mulher que escreve, e adorei!
⏸ Pausa
O último mês foi de muitas mudanças (o país continua o mesmo, ao menos) e por conta disso não consegui enviar os emails quinzenalmente. Quem sabe ainda surja mais um aí na sua caixa de entrada até o fim do ano. Mas em janeiro estarei de férias (mães sem rede de apoio, eu ouvi um amém?). Volto no fim de janeiro com mais crônicas. Obrigada por estarem aqui comigo. 💛
Estou feliz da vida que vc me tirou e totalmente abalada pelas palavras. Estou tendo uns dias estranhos em relação a Suécia, acho que esse contato foi providencial ❤️
Que sorte a minha ter vc por perto.
Se vc topar, eu vou buscar essa forma aí amanhã!
Bom demais!