Sei lá como escreve
#32 Sobre idiomas misturados e confusões linguísticas - com gifs! E notas de uma mãe criando uma criança multilíngue.
Sei lá como escreve — eis a frase que une as pessoas de norte a sul do Brasil.
Ninguém diz não sei escrever, não sei a ordem das letras, esta palavra é difícil. Não. O sei lá vem sempre na frente — as vezes encurtado (slá), as vezes indignado (ah sei lá), as vezes pessoal (sei lá eu) — mas sempre presente quando queremos dizer que não sabemos escrever certa palavra.
Reveillon, acupuntura, buquê, champanhe, impeachment, Gisele Bundchen, Schazineguer*. Sei lá como escreve!
Atire a primeira pedra quem nunca parou de digitar uma mensagem para conferir no Google se estava escrevendo direito. Ansioso é com S ou C? Incomodar é com I ou E? Encher é com CH ou X? Enquanto isso, a pessoa do outro lado da tela fica aguardando ansiosamente ao ver “digitando…” no seu perfil, pensando que diabos está acontecendo pra você demorar tanto para responder um simples “vai querer o que de almoço?”
Você quer nuggets. Você não sabe escrever nuggets. Nuguétis, nãguetz. A sua avó entende o que é nuggets? Você se perde no dicionário procurando um sinônimo para a palavra. Não acha. Escreve “franguinho empanado”. Sua avó lhe prepara um baita bife à milanesa com arroz e feijão. Você não só aprende a escrever nuggets como também a deixar de ser besta e comer melhor. (Nem tente pedir petí-gatô de sobremesa!)
Se o sei lá como escreve afeta 99,9% dos brasileiros (o 0,01% é o professor Pasquale, segundo pesquisas não oficiais), a coisa complica para quem tem de viver se comunicando em mais de um idioma contemporaneamente. Além de ficar na dúvida sobre como escrever uma palavra, avançamos para o nível “sei lá como diz.”
A pessoa está no meio de um diálogo, arrasando na fluência em português, até que de repente…
esquece uma palavra.
Ou pior: só lembra da palavra em outro idioma.
Daí em diante, passa a se comportar de maneira esquisita. Estrala os dedos três vezes no ar, fecha os olhos, ai, tá na ponta da língua, coça a cabeça, respira fundo, é, é…com C….franze a testa, é…ah, sei lá como diz. Segue num leve desespero pensando, então é isso? Tô esquecendo minha língua nativa?
Para quem sofre deste mal, é tudo muito natural, falar misturado. Não naquele estilo empreendedor cool business “mindset, brainstorming, estava numa call”, mas o singelo “hoje eu tava no mercado e…(três estralos com os dedos) sabe, eu…(fecha os olhos com força) peguei? não, péra...(olha pro céu em busca de uma intervenção divina)…eu… ripped! (rasguei) o saquinho de frutas”.
A coisa fica crítica quando palavras de uma língua não são apenas incorporadas em outra, mas conjugadas criando novos verbos do tipo “meu cachorro tava abaiando (latindo) hoje…”. O caminho sem volta é quando se tem a absoluta certeza de que uma palavra em outro idioma, é sim, a mesma em português.
— Não queria comentar na frente dos nossos amigos, mas você sabe que tempistica não existe em português, né?
Como não?! Tem certeza? (checa o dicionário, suando frio.)
Aí aparece uma criança de dois anos. Cujo o bumbum a mãe limpa todo santo dia. Começa a cantar uma música em sueco e traduz também para o português, pra ter certeza que está sendo compreendida. Pelo visto já entendeu que esta mãe não só sofre de sei lá como escreve, como também de sei lá como diz.
A menina, com toda sua sabedoria, outro dia veio com essa:
— Mamãe e Valentina são rainha, papai é rainho.
— Papai é rei, filha.
— Rrre…(coça a cabeça)...rrrii…(franze a testa)...rrr…(fecha os olhos com força)…Papai é hej, hej!*
*hej! é o jeito mais comum de dizer “olá” em sueco e se pronuncia “rei”.
Ma che cazz…?
Interessante observar que palavrão a gente nunca esquece. Nunca. Em nenhum idioma. A gente não mistura, só aumenta o repertório. Aí lembrei que, ao voltar para minha cidade natal (Criciúma, melhor xis salada do Brasil, vai por mim) após um período morando na Itália, dei de cara com uma loja de roupas chamada CAZZO. Um Cazzo grande. Gigante. Enorme. Em letras garrafais prateadas. Era impossível passar na frente daquele lugar sem ler CARALHO. E pensava “caralho, quem teve essa ideia del cazzo?” A loja fechou antes de eu ter tempo de pegar uma sacolinha de souvinir para exibir pelas ruas de Milão. Podemos concluir que o cazzo foi pro caralho. Ou o contrário. A ordem das línguas, nesse caso, não altera o resultado.
Roupa, hopa!
Após 20 dias de Brasil, Valentina deslanchou a falar português. Tem sido, até então, a fase mais incrível que acompanho desde seu nascimento. Todo dia surgem tantas palavras novas e seu vocabulário vai se enriquecendo cada vez mais. Agora ela também entende que português, italiano, inglês e sueco são jeitos diferentes de falar — e passa a associar quem e onde cada língua é mais usada. Ela escolhe o idioma que quer ouvir ao lermos um livro. “Orso bruno, nej! Urso marrom!”
É claro que vez ou outra rola confusão linguística. Dia desses ela estava correndo só de fralda pela casa e me pediu “rôpa! rôpa!”. Fiquei na dúvida se queria colocar a roupa ou sair pulando por aí (hopa, em sueco, significa pular). Ela, surpresa, parou para pensar nas opções que tinha. Escolheu se vestir e pular pela casa. Afinal, pra que escolher só um idioma, quando se pode ter o dobro da diversão?
A confusão às vezes é tanta que sonho que estou falando em inglês! Como pode?!
aconteceu comigo ontem: uma encomenda não chegou, a empresa do careca bilionário mandou email dizendo que podíamos pedir "refund", aí eu olhei pro maridão e falei que não queria "um refundo", queria o produto. ele me olhou assustado do tipo "cê sabe que essa palavra não existe em português, né?" e eu levei um tempo pra me tocar que tava fazendo eine grosse konfusion, como diria o Gilmar Mendes.