Uma bela manhã, acordou com um sorriso, olhou em meus olhos e, antes de dar bom dia, disse:
– Bam-bo-lê. Que palavra esquisita!
Paralelepípedo foi aprendida num tropeço. A palavra é tão engraçada que fez o choro do tombo ser substituído por gargalhadas e curiosidade.
V. achou que eu a tinha inventado, palavra comprida que tem "pippi" no meio — a famosa personagem sueca de meias longas que ela adora.
Repetiu por dias. Para-lele-pipe-do. Parece mesmo formulada por uma criança.
Não são todas as palavras inventadas, afinal?
— Como chama isso? — V. me perguntou, apontando para o pilar que segurava uma ponte no parquinho.
Deu branco.
Às vezes esqueço palavras, especialmente as que não fazem parte do meu cotidiano. Às vezes só as lembro em outra língua. Naquele momento, tudo que consegui fazer foi espremer os olhos, como se a força do pensamento fizesse a bendita palavra surgir em minha mente.
Nada.
A criança tinha pressa.
— Isso chama....chama...suporte pra segurar a ponte?! Eu não sei se isso tem um nome específico.
— Então vai se chamar "Fazuto".
Eu devia ter uns onze anos quando a pizza molangue passou a fazer parte do cotidiano da minha família. Meu irmão mais novo, na época com três, tentou falar algo que saiu errado e a palavra foi logo incorporada ao nosso vocabulário.
A pizza molangue passa de geração em geração, dos meus pais para suas netas.
A pizza molangue existe. E tem até jingle.
“Qualquer criança pequena sabe formar palavras com nossas peças em português. Dizem o que pretendem dizer, mesmo quando precisam criar e recriar.”
— Varsågod.1 — ela disse, me entregando um brinquedo.
— Obrigada, filha.
— Prego.2
Trocava mensagens com uma amiga, sobre o corpo nu não ser um tabu em vários lugares da Europa.
Queria contar da experiência num vestiário em Estocolmo, depois de um banho de piscina.
Mas a palavra vestiário só surgia em italiano: spogliatoio. O lugar para se despir.
No português, vestiário. O lugar para se vestir.
As sutilezas da língua demonstram muito sobre a cultura de seu povo.
"Quanto aos movimentos das línguas entre si, elas interagem, minha gente, porque as pessoas as traficam e trafegam de lá para cá e ao contrário. É coisa de quem está vivo."
— Tô målando3 — ela disse, ao ver uma foto em que fazia pinturas na escolinha.
— Você quis dizer "pintando"?
— Não, mamãe, må-lan-do. — corrigiu, pegando meu rosto e fitando dentro dos meus olhos, para que eu não esquecesse.
Achei graça. Pois já é habitual em nossa casa conjugar verbo estrangeiro. Achei graça. Porque entendi a mistureba. Achei graça. Por constatar que temos uma língua para chamar de nossa.
“Vivemos fazendo isso, misturando começos de inglês a finais em português, por exemplo, ao transformar verbos gringos em verbos nacionais, incluindo toda a fiada de conjugações.”
Tootsi (Tutsi? Tootsy?) é a brincadeira que V. inventou no parque perto de casa.
Consistia em: subir a rampa ao lado da escada, de-li-ca-da-men-te. Pular o para-lele-pípe-do. Atravessar as grades com destreza e então deslizar de bunda na íngreme superfície de cortiça, com a ajuda dos pés.
Se algum movimento não saísse como esperado, se dizia alto "oopsi tootsi!"
Não demorou para ver outras crianças fazendo o mesmo — os mesmos passos, a mesma brincadeira.
Uma semana depois, lá estava o escorregador intacto, enquanto as crianças subiam a rampa, escalavam a grade e deslizavam ao lado do pobre escorrega. O famoso “dar um brinquedo para criança e ela brincar com a caixa”. Tutsi.
Até incorporarem a palavra ao dicionário, já serão os bisnetos a brincar. Criança lá tem tempo pra isso?
Porque, lembra, toda palavra é inventada. As que existem no dicionário e as que existem para ilustrar nosso mundo particular.
“E se nos dicionários estão as palavras, eu as prefiro mais perto de mim.”
Como se chama um arranhão em cima do band-aid?
E um bolo que explode?
E o putamerda de aço no ônibus?
Fui pesquisar. Chama balaústre. É mais esquisita que bambolê.
As citações utilizadas nesta edição foram retiradas da crônica “Bora aportuguesar”, do livro Nossa língua & outras encrencas, de Ana Elisa Ribeiro.
Dicionário das palavras que não existem
Sulaquinho: fazer cócegas no sovaco.
Pizza molangue: pizza entregue em casa, para dividir com toda a família.
Fazuto: pilar que segura a ponte de parque infantil.
Tutsi: brincadeira de criança. Consulte as regras no texto acima ou com a criança mais próxima de você.
Para além das palavras
Uma conversa com Ana Elisa Ribeiro
Os benefícios do cérebro bilíngue
The Game of Fibble, é um jogo criado para inventar palavras e, claro, se divertir.
Found in Translation — a série de ilustrações de Anjana Iyer, sobre palavras únicas em diferentes idiomas.
Dicionário informal do Português brasileiro
Porque talvez
Você será aquela que me salvará
Afinal
Você é minha PALAVRA QUE NÃO EXISTE (?)
Wonderwall ainda não foi incluída no dicionário oficial da língua inglesa e, vinte anos depois, segue sendo cantada ao redor do mundo, cheia de significado para muita gente. Enfim, deve ter trocentos exemplos como esse, mas foi o que me veio a mente agora :)
Leia também
Algo como “aqui está”, em sueco.
Um jeito de dizer “não há de quê” em italiano.
Målar: do sueco, pintar.
Quase uma aula de portugues sueco e italiano, tudo junto e misturado. Excelente texto!
Que texto delicioso. Uma das coisas que eu gostava de morar fora era esse contato com outros idiomas e consequentemente outras formas de pensar e expressar a realidade. Acaba que estando no Brasil e falando português tudo fica muito naturalizado. Acho que preciso me matricular em algum curso de língua estrangeira. Ou então ter um filho 😂
Esses dias o Instagram me entregou um vídeo que tava tentando achar mas não consegui sobre como as pessoas bilíngues tomam decisões mais impulsivas na língua mãe e mais racionais em língua estrangeira. Achei super curioso isso: nós não somos as mesmas pessoas e só mudamos a língua que nos expressamos. Somos outros a depender do idioma. Que coisa maluca e sensacional.
Abraços e bom final de semana