Este é o segundo texto da série sobre as línguas que habitam meu lar. O primeiro está aqui:
Língua também é herança
— Mãe, o que é um gênio da lâmpada? — Valentina me pergunta, ao ver a imagem em um de seus tantos livros.
— É um ser para quem você pode pedir qualquer coisa.
— Qualquer coisa??
— Qualquer coisa no mundo todo. O que você pediria?
— Hmm…— ela pensa por um momento — um pastel de carne!
Pastel. Uma iguaria que carece de tradução. Tal qual brigadeiro, pão de queijo, cafuné, jeitinho e saudade.
— Mamãe, por que você me ensinou sua língua? — há cerca de um ano a pergunta surgia constantemente na boca da menina de três anos.
— É a maior herança que eu possa lhe passar.
— O que é herança?
— É uma coisa especial passada de mãe pra filha.
Língua materna, madrelingua, modersmål, mother tongue.
Se antes eu transitava despercebida em público, hoje é quase impossível. Minha filha fala pelos cotovelos o seu português com um sotaque único. Ela é do tipo que fala muito e questiona tudo. Chamamos a atenção de qualquer criança ou adulto ao nosso redor. Eles nos encaram com curiosidade. Alguns ousam perguntar que língua, afinal, é essa.
Diferente do inglês ou espanhol — idiomas fáceis de identificar — o português é intrigante. Tem quem ache que é russo, outros pensam ser francês. Ninguém arrisca adivinhar “português” — o que torna nossa língua secreta ainda mais secreta.
Pensei ser algo corriqueiro entre imigrantes passar a própria língua aos filhos, até perceber que não é. Conheço muita gente que opta por não ensinar a língua materna pra prole. Os motivos variam: falta de conexão com a própria língua, preguiça, tempo demais fora do país de origem, receio de a criança não aprender a língua local, cansaço.
Em oito anos morando fora do Brasil — atualmente na Suécia — poucas vezes fui discriminada pelo uso da minha língua materna. A última foi em um ônibus, quando voltava com a minha filha da escolinha.
Uma pessoa sentou ao meu lado e exclamou: “aqui se fala sueco!!”
Eu mantive serenidade, mas por dentro senti tristeza. V., na época com dois anos, me olhou com um misto de curiosidade e medo. Depois me perguntou por que a titia tinha falado aquilo, tão brava.
— Vai ver ela queria entender nossa língua secreta. Nem todo mundo tem esse super poder.
Passar minha língua adiante não é apenas um ato de amor. É resistência.
— Mamãe, por que você me ensinou sua língua?
— É o único modo de você poder se comunicar com o vovô, a vovó, a bisa, suas primas…
— Mas eles só falam português?
— Sim.
— SÓ PORTUGUÊS?? Por que só uma língua?
Quando alguém cresce bilingue, qual idioma escolhe passar adiante?
Pés descalços na areia, na grama, na chuva. Boca lambuzada de picolé, melancia, manga. Mãos para acariciar os cachorros de rua que cruzam seu caminho. Braços para abraçar todos que a querem bem. Quando viaja ao Brasil, V. experimenta sensações atípicas à terra onde cresce, e volta com um acervo de carinhosas lembranças e novas palavras para seu léxico particular.
Valentina carrega dentro de si um Brasil leve, caloroso e cheio de palavras interessantes.
Mãe, a boia…boia?
Filha, bóta a bota!
Mãe, o balanço balança!
Imagina mãe: uma manga suja de manga!
Imagina filha: uma mão suja de mamão!
Ah, que maluco!
Doido mesmo.
Lelé da cuca!
Mirabolante!
Ela descobre o meu mundo através da minha língua e eu redescubro minha língua através de seu mundo.
— Mamãe, por que você me ensinou sua língua?
— Certas coisas são difíceis de expressar em outro idioma. Português é minha língua do coração.
Tem quem use como antídoto para a saudade a culinária, uma canção, um aroma, uma peça de roupa ou um objeto de valor pessoal. Eu encontro refúgio nas palavras e expressões que só minha língua de berço oferece.
Rebimboca da parafuseta.
Estapafúrdio.
Borocoxô.
Gambiarra.
Pindamonhangaba.
Paralelepípedo.
Lagarteando.
Beleléu.
Minha língua materna é a bússola mais fiel que possuo para navegar por minhas origens.
Tenho registrado em um caderninho as primeiras palavras que V. falou — dos oito meses aos dois anos. Um pequeno inventário.
Ela diz que sou uma colecionadora de palavras. Eu digo a ela que é um jeito de resgatar sua infância. De lembrá-la que, mesmo sendo exposta a quatro línguas diferentes, suas primeiras palavras foram em português.
Agora registro as primeiras palavras que lê – também em português. Algo que dá um quentinho no coração, afinal sua alfabetização não se dará oficialmente em sua língua mãe.
Quem sabe, num futuro, ela escolha uma outra língua para chamar de materna, madrelingua, modersmål, mother tongue.
Mas se um dia encontrar um gênio da lâmpada, seu pedido será um pastel de carne.
E não há nada mais brasileiro do que isso.
Que texto mais gostoso :) Eu moro no Uruguai e sou casada com um argentino. Está nos nossos planos ter filhos e fico imaginando como vai ser essa dinâmica em casa, com uma criança aprendendo dois idiomas ao mesmo tempo.
Como foi pra vc com a Valentina? Entre vocês sempre conversam em português, ou só em determinados momentos?
Esse texto é um abraço em uma mãe expatriada. Aqui na Alemanha usamos a nossa “língua secreta” tbm e ela adora, ainda acha conforto no português, mas sei que o crescer vem e bagunça tudo. O importante é que a herança está sendo passada com intenção pq a gnt sabe tudo que nossa língua representa ❤️🏠