Quem um dia leu pra mim
#44 Sobre a relação entre quem lê, quem escuta e quem um dia leu pra nós.
Era fácil para ela inventar histórias. Movia os olhos para cima, entre uma pequena pausa e outra e, magicamente, me levava para lugares fantásticos. Um bosque. Uma nova cidade. Uma fazenda onde os bichos ganhavam cor, forma, voz e tom.
Era fácil para mim, com poucos anos vividos e muito espaço na caixola, decorar cada palavra que saía de sua boca. Assim, na hora de dormir, ao pedir para repetir a história da noite anterior, a jovem narradora era constantemente interrompida pela eu-criança a corrigindo, “eram três, as ovelhinhas, mãe!”
Ver a novela das 9 era seu refúgio da vida de professora/empreendedora, mãe de dois antes dos vinte. Ela sentava com as pernas dobradas no sofá e não tinha bagunça, demanda ou manha suficiente que fizessem seus olhos desgrudarem da TV.
Era neste mesmo sofá, nesta mesma posição, que ela lia livros sobre história, filosofia, ou romances que lembravam suas novelas. Por vezes, calhamaços. Outras tantas, trilogias. Terminava-os num piscar de olhos.
Às vezes dividíamos o mesmo livro. Foi assim com Harry Potter. Ela os lia em uma noite e tinha de esperar meu ritmo de pré-adolescente, que intercalava com livros chatos da ficha de leitura. Como era penoso lê-los. Difícil, na época, substituir a narração fluída do garoto na escola de magias pela linguagem rebuscada do garoto no colégio interno do Ateneu.
A admiro. (ainda que este texto esteja sendo escrito no passado, o sentimento segue no presente.)


Dizem que certos costumes vem de berço. Não me foram passados dotes culinários ou excelência em algum esporte. Esse ficou pro meu irmão do meio. Me sobraram as histórias e o entusiasmo pela leitura.
Foi natural, então, começar a ler em voz alta ainda gestando minha primeira filha. O fazia antes de dormir, aninhada no cobertor que me esquentava do gélido inverno. Ao ouvir minha voz seguir o ritmo das histórias, recebia pontapés que deixavam a barriga parecendo uma gelatina. Assim também aconteceu na segunda gravidez. A cada página lida, um pontapé e a agradável surpresa da menina que interagia com as histórias, agora do lado de fora. “Mãe, acho que o mano vai gostar muito de livros, como eu!”, ela dizia, imbuída de sua própria inocência ao pensar que a relação com os livros é algo natural.
Por um lado, lhe dou razão. O gosto por ouvir histórias surge na primeira infância, mas para ouvi-las, é necessário que alguém as conte, criando um vínculo que nasce da voz de quem lê e se expande no imaginário da criança.
Deitada ao seu lado, com as pernas dobradas como as de minha mãe naquele sofá de camurça bege, segurando o livro suspenso no ar, eu lia as primeiras histórias para aquela bebê que sequer segurava a própria cabeça. Seus olhos arregalados, os bracinhos mexendo descoordenados e, em seguida, o balbucio acompanhando a narração.
Sua pequena biblioteca se tornou fonte de imensa exploração, se familiarizando com a leitura com o corpo inteiro: mordendo, tocando, cheirando. Transformando o livro em chapéu, casinha, telefone. Sentindo ele de todas as formas.
Depois passou a se apoderar das palavras. “O que significa véspera? manifestação? expulsar? debochar? exagerado? mirabolante? ronronar? incontestável? arqueado? palíndromo? onomatopeia? O que quer dizer não dar bola? esse tal? viajar na maionese? quebrar o galho?”
Assim as histórias foram dando sentido à complexidade que a rodeia.
Com Pippi, aprende o que é independência. Com Nina, o que é bilinguismo. Com Gulliver, o que é guerra. Com Paco, o que é uma banda de Jazz. Com Bilbo, o que é linguagem de salão.
Mudar de casa, ter duas mamães, começar na escola, o que é a morte.
Os livros passam a contar o mundo.
Uma frase de Ilan Brenman, no curso Criação de histórias para crianças, ecoou dentro de mim: boas histórias infantis são aquelas que não só inspiram as crianças, mas também os adultos. Certos livros da biblioteca de V. me transportam para minhas próprias memórias. Com “Castelos de areia” revivo os dias de verão na praia, dividindo a casa com os tios que passavam o tempo jogando baralho e exclamando para que não enchêssemos o sofá de areia molhada. Em “Asas”, subo as avenidas verticais da árvore no jardim de minha falecida avó. “O Dia Dê” me faz sentir o gosto de garapa bebida na beira de estrada com os pés descalços, nas viagens onde o porta malas da Santana Quantum do pai virava uma cama.
Quando leio pros meus filhos, ouço a voz da minha mãe.
O som aveludado. A entoação aguda nos diálogos, precedida de suspiros. O movimento dos olhos seguidos de “hmm” para responder uma pergunta surgida em meio a narração. Foi estranho acostumar no início. Parecia que ela estava ali, ao meu lado, lendo para minha filha. Ou para mim.
Vejo o mesmo vínculo se criar entre avó e neta, quando uma liga pra outra e diz “vó, conta aquela história do sapo?”; entre irmãos, quando a garota transforma a mão direita em um unicórnio, a esquerda em um bode e narra uma história improvisada ao bebê que a olha com “estrelinhas nos olhos”, como ela costuma dizer.
São essas mesmas estrelas que contemplo ao ler um livro para eles. Ela, agora criança, atenta a cada detalhe da história. Ele, ainda bebê, admirando a explosão de cores em cada virar de página. A cada rima, cada imagem, cada palavra, um novo jeito de olhar o mundo.


A leitura é uma semente plantada com paciência e dedicação.
Livros pela cozinha, sala, banheiro, quarto. Alugado, emprestado, regalado, comprado. Da biblioteca, da livraria, da infância da vovó. Em prateleiras, dentro de caixinhas, em cima da mesa, espalhados por todos os cantos da casa junto aos bichos de pelúcia, as massinhas e os papéis com valiosas obras de arte.
“Você pode ler esse livro?” no café da manhã, após o almoço, na hora da janta, na ida ao banheiro, nas tardes chuvosas, antes de dormir. No metrô, no ônibus, no avião, no carrinho, na bicicleta cargo. Na areia da praia, no chão da escolinha, em meio a festa de aniversário, após a contagem regressiva para um novo ano.
De novo. De novo. Só mais uma vez. Sem mudar uma palavra. Parando nas mesmas cenas para fazer as mesmas perguntas. Até a história ser absorvida por completo, em toda a sua forma, de cabo a rabo, de trás pra frente. E então ser novamente contada, experimentando novas sensações, novos jeitos de olhar para um mesmo conto, para o mesmo mundo que se transforma a cada nova leitura.
“Mãe, dá pra entrar no livro?”
Revirando o bocado de textos que dediquei à minha filha enquanto ainda a gestava, me alegrei ao notar que o primeiro que escrevi era sobre encher nosso apêzinho de livros e seu coração de histórias.
2 de julho de 2020 (1 mês de gravidez)
Há uma grande livraria embaixo do prédio onde trabalho, que ocupa quase todo quarteirão. Toda manhã eu paro na frente da vitrine de livros infantis, querendo levar pra casa todos eles pra você.
Essa semana dedicaram a vitrine principal à você, acho que foi de propósito. Eu passo uns bons cinco minutos ali, contemplando os livros infantis cheios de cores, formas, desenhos e histórias fantásticas. Tem livro sobre o espaço, sobre florestas, bichos, mulheres incríveis, música, exploração mundo afora, e até joguinhos pra te ensinar matemática e mitologia (que seu pai adora).
Nesse emaranhado de livros, um me chamou atenção e me fez voltar a ser criança por um instante. É um livro de aventuras do Jules Verne, que veio junto de uma coleção de livros clássicos, só que para crianças. Presente da minha mãe.
Sua avó é uma bravissima contadora de histórias. Inventava uma história diferente a cada noite antes de dormir, se não estivéssemos lendo um livro juntas.
O meu preferido era o da Alice no País das Maravilhas. Li desde pequena e, enquanto crescia, a versão do livro crescia comigo até chegar ao ponto de ler a versão original na língua original.
Quero passar isso pra você. Isso que meus pais passaram pra mim. Quero encher sua estante de livros e me aventurar em cada história ao seu lado.
Acho que seus avós ainda tem meus livros de infância guardados em algum lugar. Eu tenho guardado todas as lembranças boas que isso me trouxe, e aqueles poucos minutos do virar de páginas que me faziam ficar pertinho deles. Era o que eu mais gostava.
Espero virar muitas páginas ao seu lado, e ser pra você ao menos metade do que seus avós são pra mim.
Eles são mais incríveis que as incríveis viagens de Jules Verne, vai por mim. ;)
Hoje, cinco anos após esta primeira carta, vejo a pequena garota construindo sua relação com a leitura ao passo que cresce. Como quando começou a se equilibrar com as próprias pernas, em uma das bibliotecas da cidade , apoiando as mãozinhas nas prateleiras, esticando os pés e os braços para conseguir alcançar novos livros. Ou na primeira semana na escolinha, que escolheu levar um livro como objeto para lembrar de casa. Lembrar da gente.
Os livros que uma vez viravam chapéus, agora viram ponte para se proteger do chão de lava. Ou são indicados pela mini bibliotecária (palavra trava-língua né, mãe?) aos “clientes” (vulgo eu e seu pai): “O que os senhores procuram? Um livro sobre piratas? Praia? Unicórnios? Goblins? Dragões? Em italiano? Em sueco? Não esqueça de blippar aqui”.
Assim como minha mãe, a menina encontra refúgio nas páginas ilustradas, repousa sozinha com eles no colo relendo-os à memória, contemplando silenciosamente cada detalhe das imagens e, agora, arriscando ler palavrinhas.
Eles são fonte de afeto, seja para manter sua língua de herança e identidade, compartilhar memórias ou lembrar de cada pessoa que contribuiu para sua vasta biblioteca. “Quero ler aquele da Cacá! O que o Mathias deu! O da tia Marília!”
“E esse, quem deu, mamãe?”
Foi a vovó.
O livro que embala suas noites de sono sobre o ratinho que adora livros, quem deu foi a vovó. Ela o trouxe na mala, resgatado da nossa velha biblioteca de infância. Aquele que um dia ela lia para mim e meus irmãos, e agora eu leio para meus filhos.
Com sua voz ainda morando dentro de mim.
Senhoras e senhores: há quinhentas razões pelas quais eu comecei a escrever para crianças, mas para economizar tempo mencionarei somente dez delas.
1. Crianças leem livros e não resenhas. Elas não dão a mínima para a crítica.
2. Crianças não leem para buscar sua identidade.
3. Elas não leem para se ver livres de culpa, para saciar sua sede de rebelião, ou para se desembaraçar da alienação.
4. Elas não veem utilidade na psicologia.
5. Elas detestam sociologia.
6. Elas não tentam entender Kafka ou Finnegans Wake.
7. Elas ainda creem em Deus, na família, anjos, demônios, bruxas, gnomos, lógica, claridade, pontuação e outras coisas obsoletas.
8. Elas amam estórias interessantes, não comentários, guias ou notas de rodapé.
9. Quando um livro é chato, elas bocejam descaradamente, sem qualquer vergonha ou medo da autoridade.
10. Elas não esperam que seu bem-amado escritor redima a humanidade. Jovens como são, elas sabem que isto não está sob o poder dele. Apenas adultos possuem tais ilusões infantis.
Discurso de Isaac Bashevis Singer, Nobel de Literatura (1978).
Livros em português, morando fora do Brasil
Livros de presente
Ano passado, V. teve o privilégio de comemorar seu aniversário no Brasil. Juntas tivemos a ideia de pedir livros em português de presente para os convidados. Voltamos com uma mala cheia de novas histórias, novas palavras e, o mais legal, novas recordações das pessoas que fizeram parte daquele dia especial.
Criei a listinha usando o Notion, pela facilidade que é publicar a página online e atualizar automaticamente. Aqui está o template para quem quiser copiar e montar sua própria listinha.
Clube do Livro
Abrir a caixa de correio e encontrar um livro empacotado especialmente para ela, sempre gerou entusiasmo. O nosso clube do livro preferido era o Canto da Sabiá que, infelizmente, encerrou suas atividades no fim do ano passado. Ainda contam com alguns livros em estoque (envios para países da Europa).
Estamos de olho no clube da Catavento e Livrinhos do Brasil.
Tem experiência com algum outro? Tô aceitando dicas! :)
Livros na mala
Quando alguém vem nos visitar de terras tupiniquins, sempre aproveitamos para encomendar uns livrinhos (quanto mais íntimo, maior a lista).
O mesmo acontece quando vamos viajar para outros lugares: sempre colocamos uma livraria no itinerário e deixamos um espaço reservado na babagem (e no orçamento) para livros — se em português, melhor ainda!
Bibliotecas
Bibliotecas são uma fonte de exploração incrível! Quando a criança ainda é pequena, vale inventar histórias até com livros que não se conhece a língua.
Estocolmo conta com mais de quarenta bibliotecas espalhadas pela cidade e livros em mais de 50 idiomas, inclusive em português brasileiro. A minha preferida é essa aqui.
Que honra ter meu último texto mencionada neste texto teu que é, de longe, um dos meus preferidos a partir de agora <3
Me inspirou a começar a ler livros como o da Píppi por capítulos para o meu mais velho. Uma pena que não os trouxe em português, mas vou tentar encomendar.
E uma pergunta: como você fez com os Clubes de Leitura morando fora do Brasil? Já tinha ouvido falar deles, mas achei que não funcionasse por estar longe…
Um abraço apertado em vocês aí, Nike!
Terminei com os olhos cheios d’água, sentindo meu pai aqui do meu lado, enquanto a Vicky termina de mamar e depois de termos “lido” um livro de pano com bichinhos que minha mãe bordou para ela - cada dia a história é uma, ainda que os bichinhos permaneçam os mesmos. Meu pai era quem lia para mim, toda noite, algunas das memórias mais lindas que tenho da infância com ele, que não está mais aqui mas está — em cada texto que escrevo e em cada livro que leio.
Obrigada por esse presente! ❤️